sexta-feira, 16 de maio de 2008

Dorme Rita

Tragédia underground em dois atos

De Odair J. Alves
Inspirada na música A Rita de Chico Buarque de Holanda

À memória de Gibran Rohwedder Ávila

Música de abertura:

Fome de Rita

Já nos tempos de feto
Ela era tão linda
Veio ao mundo bem vinda
Mas causou tanto mal
Rita, como uma febre noturna
Foi Saulo, Ricardo e Beto
Um grito, um carinho
Uma canção, um samba, uma traição
Em cada canto um protesto
Veio para torturar e amar
Desafiar toda mulher
Com sua beleza
Nos homens causar tristeza
Dulce, Débora e Éster
Foi sedutora sim…assim
E até o Joaquim
Caiu nos seus encantos
Jorge, o irmão, cheio de prantos
O marido chorando pelos cantos.

Todo homem tem fome
Fome de Rita
Não é qualquer um que come
E sacia essa fome
Essa fome de Rita.

Lista de personagens da montagem original do CEFAM de Tupi Paulista em 2002

Beto…………..Thiago
Carlos…………Ricardo
Débora………..Mônica
Dulce…………..Thaís
Ester…………..Karline
Jorge…………..Patric
Quincas………..Éder
Ricardo…………Odair
Rita………………Camila
Saulo…………….Silvio

Direcão de Thalel Pellison Santana
E música de Tiago Bertolin

PRIMEIRO ATO

Ao lado direito do palco no fundo está uma sepultura representando o cemitério. Ao lado esquerdo está uma sala mobiliada com uma escrivaninha ao fundo, uma maquina de escrever e várias folhas em branco e muitas outras folhas amassadas jogadas no chão, uma garrafa de wisk pela metade. No lado direito a frente há um botequim onde um homem dorme sobre o balcão (Quincas). Deitado no sofá está Ricardo, tem cerca de 20 anos e com um ar cansado dorme. Entram duas moças, Débora e Dulce, e caminham para a sepultura, ficam a olha-la imóveis. Ricardo acorda com um sobressalto, olha para o quadro na parede, que é uma enorme foto de Rita. É dia de finados.

Ricardo – Como foi que conheci você mesmo?
Na verdade não me lembro direito
Sei que eu andava sozinho, a esmo
Por esse mundo de Deus e meu peito
Era vazio como…bem, não importa
E agora você está, coitadinha, morta
Eu tinha 18, 19, 20 anos
Já não me lembro da data certa
Não tinha sonhos, não tinha planos
Eu não tinha, na verdade, quase nada
A não ser um peito e uma mente perturbada
E ai apareceu você e seu sorriso de fada
E fez da minha vida uma história encantada
Mas o destino é tão cruel
As vezes mel….as vezes fel
E agora você está entre os anjos no céu….

Ricardo caminha para a máquina. Luz em Débora e Dulce.

Dulce- Faz quase um ano que ela se foi
Sinto ainda uma dor que me rói
O coração, uma saudade…
Débora- Pobre Rita, mulher de verdade
De inegável honestidade
Linda como uma rosa em botão
Aí, essa saudade roendo o coração
Aí, como me dói

Luz sobre o bar onde toca o despertador, e Quincas acorda assustado, passa um pano sobre o balcão. Entra Beto bocejando.

Beto- Bom dia, uma branquinha vai bem
Pra começar o dia, põem um real
E dá um pãozinho francês também
Que hoje quero virar o caneco legal
Pra comemorar o feriado
Quincas- Ei homem está doente?
Sofrendo da cuca, está demente?
Comemorando dia de finados
Hoje é feriado, mas é feriado sério
Dia de rezar, ir ao cemitério
Pedir paz para as almas dos parentes
E de todos os queridos entes
Não é dia de ficar fazendo graça
E enchendo a cara de cachaça.

Luz sobre Ricardo que já está sentado a escrivaninha e põem papel na máquina.

Ricardo- Como escritor já fiz poemas
Escrevi sobre centenas de temas
Fiz das palavras matéria-prima
Fiz muitíssima rima
Escrevi variadas histórias
Só me faltou um livro de memórias

Ele bate à máquina e a luz vai se apagando. Ele com um bloco de papel e um caneta senta-se junto a beirada do palco enfrente ao bar e põem-se a escrever. Por trás dele aparece Rita. A luz não está de todo acesa, a cena acontece na penumbra.

Ricardo- (sem ver Rita) Oh céus o que é que rima
Com cometa? Cometa….cometa…cometa
Rita - Moço, pode ser borboleta?
Também pode ser roleta
Ou quem sabe bicicleta?
Ricardo-(sem olhar) Não, bicicleta não rima
Não serve minha caríssima
Tem que ser uma rima de verdade
Tem que ter autenticidade.
Rita- Lá vão o cometa
Voando feito uma borboleta
Ricardo-(sem olhar) Não, cometa não voa
Nem vai, nem bate asas, numa boa
Não me leve a mal, mas uma rima a toa
Como essa não dá, não ecoa.
Rita- Vê se essa te aguça
Lá vai o cometa
Feito uma bala na roleta russa
Ricardo- Não sei nem o seu nome
Mas posso dizer; moça desista!
Rita- Quanto a meu nome
Pode me chamar de Rita
Mas não desisto fácil de nada
Nem dessa tua rima complicada
Cruzou o céu o cometa
Sendo quase hora sexta.
E essa?
Ricardo- Devo reconhecer, essa foi boa a beca

Luz sobre as duas moças que agora estão ajoelhadas.

Dulce- Era tão feliz
Débora- É o que se diz
E agora está morta
Um corpo com o qual ninguém mais se importa
Dulce- Nem mesmo o Ricardo
Que era o seu amado
Rei no seu reinado
Duque no seu ducado
Seu homem
Dono dos sonhos que não mais a consomem.

Enquanto isso se vê Beto bebendo e comendo o pão e dando uma nota de um real a Quincas.

Dulce- Como é estranha
Essa nossa vida
Cheia de artimanhas
Débora- Cheia de vícios
Cigarro, bebida
Cheia de sacrifícios
Dulce- Vai ver que ela está bem melhor
Lá, junto de nosso Senhor

Luz sobre Rita e Ricardo.

Ricardo- A poesia
É assim uma espécie de magia
Que cativa e desafia
Rita- Não concordo com nada disso
Poesia são só palavras, só isso
Ricardo- Mas palavras são sentimentos
São mais do que simples argumentos
Pra preencherem os ouvidos
Dos menos esclarecidos
É uma vida
É a cura pra uma ferida
Uma vertiginosa descida
A um profundo abismo
É o remédio pro cinismo
E pra maldade
Poesia é um banho de verdade.
Rita- O que você faz?
Ricardo- Sou escritor
Rita- E o que mais?
Ricardo- Nada mais eu faço
Escrevo, não disfarço
Sabe, eu quis ser doutor
Agricultor, operário
Fazer parte desse proletário
Que canta e é feliz
E como se diz
Sempre fazendo papel de otário
Eu quis ser médico
Receitar analgésico
Pra acabar com a dor
Quis ser pintor
Escultor, desenhar um mundo melhor
Fui um sonhador
E acabei como escritor.
Rita- É também poeta?
Ricardo- Não da forma correta
Os poetas fazem poesia
E não essa sangria
Que é o meu verso
Rita- Só por causa dos cometas
E das borboletas?
Ricardo- E das bicicletas
Que não rimam com nada nesse universo
Rita- Oh bicicleta, bicicleta
És tão discreta
Por que será que esse poeta de detesta?

Os dois riem. Luz sobre o bar.

Beto- Não faz diferença
Se eu pelo menos tivesse alguma crença
Acreditasse no céu como recompensa
Essa pessoal que está morto
Seja num buraco todo torto
Ou em uma sepultura de luxo
Eles não têm mais nada.
Aquele cemitério todo esdrúxulo
Não tem razão, não tem vida
Então por que o dia de finados?
Afinal foram todos sepultados
Temos é que esquecer
E viver nossas vidas, me ouviu Quincas, viver…
Quincas- Nós não podemos nos esquecer
Simplesmente amputar
Uma parte de nossa vida
É certo que um dia a gente falece
E se ninguém fazer uma prece
O que será do homicida?
Devemos rezar, sempre rezar
Pedir pela alma dos falecidos
Mesmo que não sejam nossos amigos
Mesmo que sejam os piores inimigos
Que seja alguém que nos roubou,
Todos merecem o nosso perdão
Ouviu bem Beto, me escutou?
Beto- Eu não perdou o fulano que detesto
O sujeito que disser que eu não presto
Comigo não tem essa de perdão
Nem vivo e muito menos no caixão,
Me destratou eu tiro meu três oitão
E dou um tiro no olho do cidadão.

Luz nas duas moças.

Dulce- Quanto tempo faz que éramos crianças,
Você, a Rita, eu, cheias de esperanças
Em um futuro, e olha o que acontece
As vezes penso, será que a gente merece?
Tanto sofrimento
Essa vida dura, amarga
Trabalhando feito burro de carga
Pra no fim dar com os burros n`água,
Convivendo com o ressentimento
Sem contar essa mágoa
Que se acumula aqui no fundo do peito.
Débora- A vida é assim mesmo minha amiga
Mas só na morte que a gente não dá jeito
A vida castiga, castiga….castiga
Mas a gente sempre sobrevive
A vida, essa fera que mastiga
O nosso cérebro, a nossa alma
Tritura nossos ossos, nossa calma
Nos desvaloriza mais do que o Real
Esse é o mundo em que a gente vive
Pobre da Rita
Sempre sorridente, nunca a vi aflita
Vivia despreocupada, e o sorriso,
Nossa, era como uma visão do paraíso
Dulce- Aqueles olhos cor de mel
Contraste com a pele cor de chocolate
Os cabelos longos feito a Rapunzel,
Os lábios tingidos de batom escarlate
Nos cabelos longos usava uma fita
Azul, aí que saudades suas, Rita.
Débora- E como gostava de poesia
Como gostava de sambar
Cantarolando noite e dia
Como era lindo aquele olhar
Aquele seu gingado.
Dulce- E como amava o Ricardo.
Débora- E como ele amava ela.
Dulce- Como era boa a vida dela.

Luz sobre Ricardo e Rita que agora estão sentados bem juntos e se olham ternamente, ele lhe acaricia o rosto, quando vão se beijar a luz vai se apagando lentamente e se acende no set do botequim, onde entra Jorge, que é muito forte, mas tem os olhos muito mansos.

Jorge- Hoje é um dia tão triste
Quincas- O que vai ser?
Jorge- Um vinho
Mas eu precisava mesmo era de um carinho
O que me adianta ter
Toda essa fortuna
Se quando chega a tristeza nada resiste
Nem dinheiro, nem poder
Essa insônia noturna
Que deixa a gente com vontade
De dar um tiro na cabeça, feito um covarde.
É assim que eu me sinto
Nada pude fazer, minha irmã se foi .
Quincas, você sabe que eu não minto
Por isso digo que estou um trapo
Um verdadeiro farrapo
Nem tive coragem de ir ao cemitério
Ver o túmulo da pobre da Rita
Sabe, pra mim é um mistério
Como pode? Linda, doce, uma artista,
Se vai assim de repente. Sabe, dói
Dói muito só de lembrar
Dá aquela vontade de chorar,
Vontade de sair gritando.
Quincas- Homem, você está chorando?
Beto- Diz ai chefia
Diz ai que macho não chora.
Jorge- Quando a gente perde alguém que adora
Do que vale essa valentia?
Não vale nada, porcaria,
Macho também chora, e como chora…
Quincas- Calma homem, você não está sozinho,
Tem amigos, tem uma garrafa de vinho
Beto- Tem dinheiro, aliás, muito dinheiro
Sempre foi festeiro
Já foi alegria do puteiro
Da dona Geni, o mundo não acabou…
Quincas- Homem, bola pra frente, chuta pro gol….

Jorge toma o vinho e Quincas enche o copo outra vez.
Luz no set da escrivaninha.

Ricardo- Nosso primeiro beijo
Fecho os olhos e vejo
O nosso desejo
O amor nascendo,
Crescendo,
Ficando cada vez mais forte
Mais sólido , duro
Cada vez mais puro
Então veio a ingrata morte.

Levanta e a luz sempre nele segue seus passos

Ricardo- Rita
O meu coração bate
Ao ponto do “infarte”
Meu coração te grita
E me diz que tudo rima com bicicleta
Como era o seu desejo
Aquele poema de amor
Deveria terminar de forma incorreta
Pra poder rimar com nossos beijos
A lua que lá no horizonte mingua
Era doce como tua língua
E quando se punha o sol
Estávamos já debaixo do lençol
Não tivemos nenhum pudor
Mas me diga querida Rita
Existe algo que à morte resista?
A infame morte,
Não querida, ela é mais forte.

Ele se senta.
Luz no botequim.

Jorge- E agora, como é que me arranjo
Sem a Rita, que era um verdadeiro anjo?
Minha irmã era tudo pra mim
Verdade, era tudo sim.
Beto- Lembro da dona Rita sambando
Dizendo; De samba eu manjo
E então sorria e saia dançando.
Quincas- Era uma moça direita, muito boa
Era a simpatia em pessoa.
Nossa como o tempo voa.

Luz no set do cemitério.

Dulce- O tempo passa tão depressa
Os dias vão todos de uma vez nessa
Nossa vida tão corrida,
Mas isso não vai tirar a Rita
Das nossas lembranças, essa vida
Tão estranha, tão esquisita
Não vai levar nossas lembranças
Embora como levou a Rita
Nós não perderemos nossas esperanças.
Débora- É isso mesmo amiga
A vida está pior que urtiga.

As duas se levantam, fazem o sinal da cruz e se vão lentamente. Luz no set da escrivaninha, Ricardo bate à máquina até exaustão, de repente pára, vai até a parede e retira o retrato da Rita, a joga no lixo. Senta-se e bate novamente, toma no gargalo da garrafa e bate ainda mais. Volta ao lixo, pega a foto e a coloca de volta a parede.

Ricardo- Sabe Rita,
Eu escrevi vários poemas de amor,
Eu sei que você não acredita
Que o amor possa ser eterno
Sacramentado de grinalda e terno,
Eu falava sério quando disse o Sim
Quando o padre perguntou a mim
Todas aquelas juras
Todas aquelas promessas pro futuro.

Ele volta para a maquina. Entram Dulce e Débora, elas se sentam no sofá.

Dulce- Débora, que calor.
Também desse jeito
Dentro desse vestido preto
Haja suor.
Débora- Tenho até um cheiro estranho,
Mas isso se resolve com um banho,
Agora é tocar a vida pra frente
Que atrás vem gente.
Dulce- Essa nossa vida tão sem graça
Bem que podia ser diferente
Às vezes penso em fazer uma loucura
Assim só de pirraça
Pra fugir dessa vida dura
Esse negócio de trabalhar a vida inteira
E envelhecer sem ter nada
Nenhuma pose verdadeira
Além do nome e das contas pra pagar.
Eta vidinha complicada.
Débora- Mas se você for analisar
Friamente a questão
A vida não é assim
Tão desgraçada e tão ruim
Ela é isso mesmo, é roer osso
De pescoço.
Dulce- Por falar em osso
Vou preparar o nosso
Almoço.
Débora- Eu estou faminta
Vem, ouça, sinta
Como minha barriga ronca
Me dando bronca.

As duas se levantam e saem. Luz no set do bar.

Jorge- Pois é, a conversa está boa,
Mas tenho que ir pra fazenda
Se eu ficar aqui à toa
No fim do mês não garanto minha renda.

Ele sai.

Beto- Jorge, eta homem forte
Essa vai dar trabalho pra morte.
Quincas- Dá nada moço,
Quando a danada vem não tem alvoroço
Ela te pega
Te arrasta pelo pescoço
E te carrega,
Te leva pra além,
Com a morte não vem
Que não tem,
O jeito é se conformar e dizer amém.
Não vê o caso da Rita?
Até outro dia alegre feito uma cabrita,
Forte, batalhadora, ativista,
Escultora, prendadissima artista.
No entanto, hoje é só mais uma na lista.
Não é que eu seja fatalista
Beto, mas da morte ninguém escapa não,
Com ela não tem conversação.
Beto- Eu não tenho medo da morte
Se eu tiver um pouquinho de sorte
Quero morrer bem velhinho,
Assim feito um passarinho.
Quinas- De falta de alpiste ou de pedrada?

Quincas ri. Luz no set de Ricardo. Ele ainda bebe no gargalo da garrafa. Corre até a gaveta da escrivaninha e de lá retira um revolver. Aponta a arma em direção a foto de Rita na parede.

Ricardo- É tanta saudade
Rita, que até dá vontade
De cometer uma atrocidade,
Sabe que me refiro,
Sabe, eu poderia ter dar um tiro
Pra ver seu último suspiro,
Mas você não está mais aqui comigo
Estou sozinho com meu umbigo
E não sou mais dono do meu próprio mundo.

Chega mais perto ainda apontando a arma para a foto.

Ricardo- Como é que pode ser assim,
Como a vida pode ter um fim
Tão trágico?

Anda de costas até o cesto de lixo e se vira lentamente e joga a arma.

Ricardo- Era tão mágico,
Lembra como era lindo?
Era tão profundo…

De repente ele é tomada por uma fúria inexplicável, pega a arma e corre para a foto.

Ricardo- Será que você estava só fingindo?
Será que tudo era falsidade?
Ah, Rita que maldade.

Pára, está exausto, fita o retrato ainda empunhando a arma.

Ricardo- Eu não creio que você fingia tudo,
Rita, que absurdo.
Você fingia todo aquele calor
Todo aquele amor,
E todos os orgasmos, eram também de mentira?
Isso me pira
Só de imaginar, não é possível,
Rita, é inconcebível.
Seu olhar era tão sincero,
Apesar de todo o mistério
Que se escondia em seus cabelos
Lisos feito linha nos novelos,
Toda aquela alegria
Todo aquele tesão,
Toda aquela poesia
De cortar o coração,
Não pode ter sido apenas falsidade,
Diga Rita, diga que era tudo verdade.

Ele está abaladissimo, se joga no sofá, joga a arma no chão. Fica imóvel enquanto a luz se transfere para o cemitério, onde esta Saulo, tem uma rosa branca nas mãos e uma grande tristeza nos olhos.

Saulo- Sabe Rita, até hoje eu
Não entendo o que aconteceu,
Eu te amava e você me abandonou
Quando aquele Ricardo apareceu
Na sua vida, falando de poesia
De Rimbaud, e todo esse povo que já morreu,
Essa coisa toda de arte, museu
E você me deixou
E seguiu a calda de um cometa
Mas eu fiquei feliz, afinal
Você estava em uma felicidade descomunal
E a sua felicidade sempre veio em primeiro
Lugar, aquele teu sorriso tão verdadeiro,
Tão intenso, tão puro, mas me prometa
Que você ficaria feliz aí onde
Você está hoje, é no céu que você se esconde
Hoje minha querida?
Na época em que tudo aconteceu,
Quando o tão Ricardo apareceu
Com seu Drummond e seu Vinicius de Morais
Eu achei que não ia mais
Conseguir viver sem a sua companhia
E também achei que você não sobreviveria
A um amor de poesia
Mas eu estava totalmente errado
Você realmente tinha encontrado
O homem da sua vida.
Admito minha querida,
Eu não era o homem certo
Pra você, mas prometi estar sempre por perto
Pra quando você precisar de mim
Por que o amor não acaba assim
Ele tem começo mais não tem fim.
Rita, onde quer que você esteja,
Vem olha pra mim,
Pros meus olhos e veja
Que seja, verdade, seja
Como for
Não se acabou o meu amor.

Ele começa a tirar as pétalas da rosa num lento e nostálgico bem-me-quer e malmequer.

Saulo- Sabe Rita, o tempo passa, passa…voa
A gente tenta fingir que está tudo numa boa
Mas o coração ainda está cheio de marcas
Então a gente chuta mesmo o pau da barraca
Joga tudo pra cima e fica pra baixo
Não adianta fazer pose de macho
Dizer que está tudo encima, tudo certinho.
A verdade, minha querida, Rita
É que quando você se foi eu fiquei sem caminho.
Ah, hora maldita…maldita…mil vezes maldita
A hora em que você foi-se embora,
Agora o meu coração chora,
Tenho pena desse meu peito que implora
Pra você voltar e me trazer a paz
Mas sei que agora
Já é tarde, muito tarde, tarde demais….

Ele joga o caule encima da sepultura e senta-se no chão. A luz se transfere para o set do botequim. Beto está caído sobre o balcão e Quincas passa um pano úmido. Quincas vai ao fundo, onde há uma rádio, antigo de pilhas e a musica invade o bar, a musica é Dorme Rita, mas ele desliga depois dos primeiros versos e volta a passar o pano no balcão. Luz na sala, Dulce e Débora, cada uma delas entra com um prato. Dulce põem o prato sobre o sofá e sai de cena, quando retorna trás uma garrafa de vinho e duas taças.

Dulce- Gosto tanto de vinho
Me faz sonhar de olhos abertos
Desce pela garganta, assim com um calorzinho
Mesmo estando geladinho
Débora- Acho um pouco forte, fico meio tonta
Com passos incertos
A gente fica bêbeda e diz o que nunca conta
A ninguém. Conta os segredos mais escondidos.
Dulce- É por que bêbado não mente
Quando o vinho vai pra mente
Abre as torneirinhas da verdade

Enquanto conversam enchem as taças.

Débora- É verdade, bêbado realmente
Não mente
Diz tudo o que tem, tudo o que sente
Não esconde nada, abre o coração
Mas em compensação
Esquece completamente
Toda a razão
E ai na certa é confusão
Dulce- Pois é, bêbado não sabe o que faz
Mas vamos beber que a gente ganha mais
O vinho aquece a alma
Trás lucidez e acima de tudo trás calma
Até me dá vontade de dançar uma valsa.
Débora- Já eu prefiro é uma boa salsa.

Elas se abraçam e começam sos primeiros passos de uma de uma valsa, a luz se transfere para o cemitério onde Saulo se levanta lentamente, tem um olhar distante e fala docemente.

Saulo- Rita, adeus, meu amor
Vim aqui só pra dizer que essa noite
Sonhei com você, um sonho tão bonito
Era em meio a chuva, ela caia
Forte nos batia
Como se fosse um açoite
Sobre nossas costas, dava pra sentir a dor
Até vontade de soltar um grito
Mas valia a pena pois você estava comigo
E sorria um sorriso tão lindo
Eu estava parado na chuva, você vinha vindo
Assim, os olhos brilhando…sorrindo
E me abraçava com tanto calor
Fazia dos meus braços o teu abrigo
E no meio de toda aquela tempestade
A gente fez amor…muito amor,
A gente se amou por uma eternidade
E quanto mais a gente se amava
Mais dava vontade,
Ah Rita, e como dava….

Ele contempla ainda mais intensamente a sepultura.

Saulo- Uma vontade louca
De fazer amor, até parecia
Que a eternidade toda ainda era pouca
Muito pouca pra nós dois
E no antes, no durante e no depois
O que a gente queria era mais
Mais tempo, mais chuva, mais amor,
Mais tesão, mais vida, mais paz…
E então…maldição…de repente
Eu acordei
E estava sozinho e carente,
Então eu te odiei….

Busca o caule da rosa e contempla com olhos perdidos e fala docemente.

Saulo- Quando a raiva passou
Eu corri até o jardim
E colhi, entre touceiras de capim,
A rosa mais linda que ali brotou
E a rosa sorriu pra mim
Um sorriso que me dizia; Sim,
Saulo, me leve até a Rita
Eu disse; Rosa, você é tão bonita
E tão perfumada
Quer mesmo ser despedaçada
Ah Rita, a rosa me sorriu
E eu a trouxe pra você sentir o perfume
Mas ela teve ciúme
De você que é mais bonita
E seu ciúme a traiu
E eu a despedacei,
Mas juro que por um instante amei
Essa rosa, como nunca amei nada…

Joga o caule de volta sobre a sepultura.

Saulo- Eu estou como essa rosa
Despedaçado…a vida tem sido maldosa
Não tem feito boas coisas comigo
Roubou-me você…meus amigos,
As minhas pétalas caíram
Murcharam-se, meus dias se ruíram
Sei que não foram muitos os males
E nem meus caules
Sobreviveram
É bem verdade Rita
Que ao teu lado a vida era menos aflita
E por mais que ei insista
Em dizer que a vida
Contigo era mais bonita,
Mais doce, mais colorida,
Não adianta
Dizer que você era uma santa
Que isso só vai aumentar minha revolta
E nada mais vai te trazer de volta
Nem reza, muito menos, macumba
Vai fazer você se levantar dessa tumba…

Luz sobre a borda do palco, onde Ricardo e Rita ainda estão sentados.

Rita- Tenho algo a dizer Ricardo
Ricardo- Diga.
Rita- Eu tenho namorada
Só posso ser sua amiga.

Luz novamente sobre Saulo.

Saulo- Você sempre foi o meu amor
Até aparecer aquele escritor

Luz na sala, não há mais pratos, somente vinho e as duas ainda dançam.

Dulce- Lembro da Rita no dia do casamento
Débora- Realmente foi inesquecível aquele momento
Como era branco o seu vestido
Dulce- E como o Ricardo estava envaidecido
Débora- Também, com noiva tão bonita

Luz sobre Saulo.

Saulo- E você uma artista
Eu amava a sua arte
Alias, amava você em cada parte.

Luz sobre as duas.

Dulce- A igreja lotada de gente
Débora- A multidão tão contente

Luz em Saulo.

Saulo- Fiquei triste no dia do seu casamento,
Foi um sofrimento,
Todos os sonhos viraram tormento.

Luz nas duas.

Dulce- Temos que lavar os pratos.

Elas param a dança e recolhem as taças e saem. Luz em Saulo.

Saulo- Eu tenho que encarar os fatos
Engolir a amarga verdade
E tentar conviver com a saudade
Que ainda me domina.

Luz sobre a escrivaninha onde já está Ricardo.

Ricardo- Me fascina o teu sorriso de menina
Aquela doçura quase que de criança
Teu olhar perdido,
Totalmente enternecido
E invadido de esperança.

Batem na porta. Ricardo abre uma porta imaginária e por ela entra Éster, eles se abraçam demoradamente, ela também está bastante triste.

Éster- Como vai Ricardo?
Ricardo- Assim…assim….
Éster- Força, meu cunhado
Estava triste por isso vim
Pra cá, pra gente conversar um pouco.
Me diga, como tem levado a vida?
Ricardo- Estou quase louco
Depois que a Rita se foi, não escrevi nada
Que preste, parece que perdi o talento
Sabe, aquela gana, a vontade, bem que tento….
Éster- Isso é a saudade.
Ricardo- Tenho pesadelos, cada sonho esquisito
Ela vem me ver, sabe, em espírito
Éster- É a saudade….
Ela faz coisas estranhas com a cabeça
Da gente, pode virar até doença,
Essa coisa de loucura,
Mas um dia a saudade madura
E a gente fica mais leve
A gente tem que rezar, pedir que a alma
Da Rita se eleve
E ter paciência e muita calma.
Ricardo- É o que espero!
Quer um café? Um suco?
Éster- Obrigado, mas não quero.
Ricardo- Éster, acho que estou maluco,
Olha os papeis no chão
Não consigo produzir nem mais um soneto
Nenhum texto
Antes o amor era um pretexto,
Servia como uma espécie de amuleto
Eu fazia cada composição.
Éster- Sei! Era de cortar o coração
Ricardo- Hoje não escrevo mais nenhuma linha
Nenhumazinha!
Entende o que o que é isso?
Faço um danado de um sacrifício
Mas não sai nenhuma linha
Sorte desgraçada a minha…
Éster- Não leve tudo assim a ferro e fogo
Isso passa logo.
Ricardo- Mas antes que passe eu me afogo
Nessa minha maldita depressão
Éster - Você está precisando tirar férias,
Descansar um pouco,
Deixar o sangue fluir pelas artérias
Com mais liberdade, sem sufoco
Quem sabe ir para Natal
Pra Índia, pro Nepal
Descansar o corpo e o espírito
Deixar esse clima esquisito
Que te cerca aqui…as lembranças,
Tem que ver as pessoas
Outros lugares, outros sons
Outras festas, outras danças
Ver homens maus, homens bons
Viver um pouco, com maneiras atoas,
Com liberdade, sem nenhum compromisso.
Ricardo- Éster o que é isso?
Imagine, abandonar tudo o que eu tenho
Tudo o que venho
Construindo a anos.
Éster- O que você construiu além de amargura
E enganos?
Cadê a paz? Cadê a fartura?
Cadê sua obra?
Tirando os sonhos o que é que te sobra?
Pode deixar que eu mesmo respondo.
Te sobram os pesadelos e os medos.
Ricardo- Essas coisas não são segredos
Eu não as escondo
De ninguém, mas largar tudo
Não creio que seja a saída.
Éster- Você tem que se livrar de tudo e com urgência
Buscar uma saída d emergência,
Acho que tem que largar tudo
Romper todos os laços com a violência
De uma decisão bem tomada.
Ricardo- Não sei…talvez…
Éster- Você tem que decidir duma vez
Por todas romper os laços
Com todos os fracassos
Que te atingiram depois da morte
Da Rita. Tem que tentar mudar a sorte,
Não deixar que essa solidão
Te invada desse jeito,
Acabando com tudo que tem no teu coração
Querendo fazer o coitado querer saltar do peito.
Isso não pode te fazer bem.
Ricardo- Eu acho que você tem
Mesmo razão. Eu estou aprisionado
Em minhas próprias recordações
Escravizado por minhas lembranças
Minha vida as vezes cria situações
Onde comigo mesmo fico decepcionado
E perco todas as minhas esperanças
Em um futuro melhor.
Já não seio o que pode ser pior.

Ele caminha para a escrivaninha e a luz o acompanha. Se senta e passa a bater à maquina.

Ricardo- Antigamente toda palavra estava ao meu alcance
Em muito pouco tempo escrevia um romance
Escrevia um poema
Num instante, em um único lance,
Não importava qual complicado fosse o tema.

Ele retira a folha com raiva e a atira ao chão.

Ricardo- Mas hoje não adianta
O verso não sai do coração,
O grito não escorre da garganta
Tudo é decepção.

Põem outra folha.

Ricardo- Tentativa após tentativa
A mente, antes tão ativa,
Hoje é feita somente de ecos
Como se tudo fosse só um teatro de bonecos
E eu uma simples marionete
Hoje é só a frustração que se repete,
Se repete sem cessar um segundo.

Bate desesperadamente. Pára, está exausto.

Ricardo- Essa amargura é um poço profundo
E eu caio abismo a dentro
Uma queda sem fim
Em um poço que não tem fundo.
E como dói, essa queda machuca
Me fere como se eu estivesse no centro
De um furacão. Isso pra mim
É uma espécie de morte
Uma espécie de arapuca
Que me aprisiona. Não consigo ser forte
O suficiente para me libertar!
Eu não consigo criar.
Não consigo sentir nada além
De uma dor que me consome,
Já não tenho um pingo de sono
Não tenho mais fome
O que tenho é um abandono
E o que eu digo e somente um nome
Rita! Rita! Rita, que é o meu maior bem!

Arranca a folha, amassa e joga no chão, coloca outra enquanto fala, cada vez mais exaltado.

Ricardo- Eu me sinto como essa folha
Amassado, reduzido a um bagaço
Sem ar, como se estivesse dentro de uma bolha
Não sei mais o que faço
Pra poder recuperar minha auto-estima
Pra conseguir de novo, escrever um romance
Não consigo fazer uma única rima,
Antes era como tirar doce de criança
Eu escrevia noite e dia, sol e lua
Quando me cansava vinha a Rita
E me dizia: Vai meu amor descanse!
E nada era tarefa árdua
Pra mim, tudo era fácil, a vida era bonita
E hoje o que é que eu tenho?
Em nada eu me empenho
Sou um traste sem força
E por mais que me torça
Eu não consigo,
Deus, por que fez isso comigo?

Ele volta para junto de Éster e a sala então se ilumina.

Éster- Por que não faz o que eu digo hem?
Viaje um pouco que vai te fazer bem.
Ricardo- Mudando de assunto
E o Carlos, teu marido,
Que não veio junto
Com você, já faz tempo que não o vejo.
Éster- Carlos deve estar por ai, perdido
Aquela lá é igual a macaco de realejo
Vive brincando com a sorte.
Ricardo- Ele está bem?
Éster- Sim, está vendendo saúde, forte
Alias saúde é o que ele mais tem.
Estava em casa ainda agora
E por falar em casas
Já vou bater as minhas asas.
Tenho que ir embora.

Apaga-se a luz, o palco fica escuro, a luz vai se acendendo lentamente no set do cemitério e entra Beto visivelmente bêbado, tem uma garrafa em uma das mãos, cambaleia até a sepultura.

Beto- Pois é dona Rita
Pra mim o dia de finados é uma bobagem.
Veja o caso da senhora
Por fora essa sepultura tão bonita
Mas ai dentro os vermes agem
De tal forma que levam toda a carne embora
E não sobra nada
Só a caveira
Só os ossos, todos branquinhos
Toda a carne já foi devorada
Não sobrou uma única célula inteira
E com o tempo todos os restinhos
Vão desaparecer,
Não vai sobrar nada para contar história
Só aquela lembrancinha
Guardada lá no fundo da memória
Mas com o tempo a gente vai ver
Até mesmo isso desaparecer,
E onde a senhora estiver
Vai ficar completamente sozinha.

Ele quer ir embora, mas algo mais forte o retém.

Beto- Então me diz dona Rita
O que adiantou toda essa vida
O que adiantou ser tão bonita
Ser tão desejada
Se agora está esquecida
Completamente abandonada?

A luz se apaga. Luz no botequim. Quincas enche o copo e bebe. A sua frente está Carlos também com um copo cheio. Os dois fazem um brinde silencioso. Luz de volta ao set do cemitério. Onde Beto ainda toma no gargalo da garrafa.

Beto- Pois é dona Rita, a vida se acabou,
É sempre assim, a gente
Está feliz, contente
Acha que está tudo bem e de repente
A gente dançou.
Eu, dona Rita, não tenho medo da morte
Não me cuido, sou sedentário
Ao extremo, não pratico nenhum esporte
Não faço questão de ser bonito, nem forte
Não me preocupo com o salário
Se ele sobe ou se ele desce
Não penso em rezar e nem faço prece
As vezes me pergunto se Deus existe.
Também não ligo pra moda
Não estou nem ai pra maldita cultura pop
Não me preocupo com o IBOP
Pois é dona Rita, o mundo roda e roda
Mas a vida continua sempre igual
Gente nasce, gente morre é assim…
A vida segue o seu curso natural
Eu, dona Rita, não sou alegre e nem triste
Não me interesso por filosofia
Feito aquele cara que escreveu O Mundo se Sofia,
Não gosto de livros, somente os de poesia
Prefiro ver a vida passar na frente
Da minha janela.
Veja essa sepultura, tão bela
Será que vale a pena
Afinal a vida é tão pequena,
Em compensação a morte é eterna.

A luz se apaga. Ricardo e Rita estão na borda do palco.

Ricardo- Você ama seu namorado?
Rita- Não sei
Não sei como é o amor
Nunca amei.

Ela se levanta bruscamente

Ricardo- Então não o ama?
Rita- O que é o amor?
Ricardo- O amor é uma chama
Que invade o peito e inflama
O corpo, o coração e a alma
E nos rouba toda a calma.
Rita- E dói?
Ricardo- Corroei.

Luz no set do botequim.

Carlos- A dor corrói o peito
De um jeito
Que deixa a gente sem ação.

Luz em Ricardo e Rita.

Rita- Corrói?
Ricardo- Corrói o coração
A gente tem vontade de mergulhar
Mesmo sem saber nadar
Voar sem ter asas
O peito fica em brasas
E queima todo o coração.
A gente deixa de ser racional.

Luz no botequim.

Quincas- E isso faz um mal.
Carlos- Essa dor corrói feito amor

Luz em Ricardo e Rita.

Rita- Bem, seja como for
Acho que não amo, então.

Luz no botequim.

Carlos- Eu amo minha mulher
Não sei o que seria de mim sem a Éster
Entendo o que o Ricardo sente.

Luz em Ricardo e Rita.

Ricardo- O amor é como fogo….quente
É um sentimento que nos queima.

Luz no botequim.

Carlos- A gente briga, a gente teima
Mas isso é o amor
Quincas- Nas mesas desse botequim
Já vi muitas historias sem fim.
Vi amores nascerem e terem fim.

Luz no set do cemitério.

Beto- Sabe dona Rita
Eu ano tenho medo da morte por que ela é bonita
Verdade, ela é a coisa mais linda que existe
Quando alguém morre a gente fica triste,
Mas não devia não dona Rita,
Tem gente que acha a morte sinistra, mas
A morte é descanso é paz.

Luz em Ricardo e Rita.

Ricardo- O amor é eterno
Rita- Eterna é somente a morte.
Ricardo- O amor é mais forte
É capaz a vencer a distância
É capaz até mesmo a ausência
Rita- Amar deve ser um inferno!

Luz no botequim.

Carlos- Não acredito em amor eterno
Quinas- Nada é eterno, por mais que perdure
Carlos- É mesmo como disse o poeta
Eterno enquanto dure
Quinas- Ai está uma coisa certa
Amar é padecer no paraíso.
O amor nasce em um sorriso
Se morrer um dia será em lagrimas.

Luz no cemitério.

Beto- Na morte não existem lastimas
Não é que eu tenha vontade de morrer dona Rita
Por enquanto tomo minha dose
E se ficar mal me aplicam glicose
Na veia e enquanto a tal da cirrose
Não me alcança eu vou vivendo,
Escrevendo o que a vida me dita
A senhora sabe como é
Seu marido também escreve,
Não as bobagens minhas, versos de porta de bar
O Ricardo é escritor de verdade, né
Ele escreve muito bem, sabe ser breve
Sabe ser leve
Sabe como fazer o leitor se amarrar
No que escreve
Tem uma literatura forte, viril,
Um verso ágil.

Luz em Ricardo e Rita.

Ricardo- É como aquela musica do Gilberto Gil.
“O amor é como uma rosa no jardim
a gente cuida, a gente olha
a gente deixa o sol bater
pra crescer, pra crescer”
Rita- Você acha mesmo que o amor é assim?
Ricardo- Tenho certeza.

Luz no cemitério

Beto- Admiro o seu marido
Alias fui no casamento
E que festa bonita
Bonita mesmo dona Rita
Mas tinha pouca bebida
Acho seu marido um homem de muito sentimento
Li os livros que ele escreveu
É realmente um poeta inato,
Leio, leio e nunca me farto,
Mas depois que a senhora partiu
Ele não escreveu um único verso
Parece que perdeu o gosto pela vida
Até parece que uma nuvem o envolveu
E não há força nesse universo
Que o faça acordar, onde já se viu.

Luz em Ricardo e Rita.

Ricardo- Ouça Rita o que lhe digo
Não há força nesse universo
Que seja maior que o amor.

Luz no cemitério.

Beto- Isso é um perigo
Dona Rita, o homem parece que morreu
Junto com a senhora
Se esqueceu,
Que a vida continua aqui fora
Faz meses que não sai daquela casa
O dia todo tentando escrever
Não consegue e se arrasa
Mais e mais, isso não está certo,
Tristeza tem limites dona Rita.

Luz no botequim.

Carlos- Pois é seu Quincas o poeta estava certo
Tudo começa e acaba de repente
Não mais que de repente.

Luz no cemitério.

Beto- Fica o dia todo atrás da escrivaninha
Coitado, não consegue compor uma linha
Essa não é sina de poeta
Poeta tem que amar, tem que ser amado
E olha o que o destino
Fez com o pobre coitado,
Parece um menino,
Indefeso, acuado, assustado,
Perdido sem rumo, assim ele não pode andar
Ele precisa da estrada certa
Pra poder caminhar
E novamente se encontrar.
Aquela casa escura
Ele lá, a senhora
Aqui nessa sepultura,
E toda uma vida pra viver aqui fora.

Apaga-se a luz do cemitério. Luz na escrivaninha. Ricardo bate a maquina, quando batem na porta, a mesma porta imaginária. Ele abre e entra Saulo. Eles se olham, primeiro de modo desafiador, depois Saulo anda pela casa.

Saulo- Se trancou aqui por causa dela?
Desde que a Rita se foi
Você nunca mais abriu nenhuma janela,
Eu sei como é, em mim também dói.
Ricardo- Você me detesta
Veio ver o que ainda resta
De mim,
Veio ver o meu fim
E tripudiar sobre minha desgraça?
Saulo- Não Ricardo,
Mesmo porque isso não é coisa que se faça,
Apenas vim te ver
Soube que você se isolou do mundo,
Dizem que vive enclausurado
Em um desgosto profundo.
Vim oferecer meus ombros
Tentar te salvar dos escombros
Da morte dela.
Ricardo- Não me importo com o que vão dizer,
Ou com o que estão dizendo,
Estou vivo, não estou?
Saulo- Fui vê-la em sua sepultura,
Soube que nunca a visitou.
Ricardo- Pra que? Só me traria mais amargura,
Mas infelicidade do que estou tendo.
Saulo- Você a amava tanto quanto eu,
Talvez mais, não sei….
Ricardo- Amor é amor, não tem intensidade
Amei-a quando pela primeira vez a olhei,
Amei de verdade
Como um bicho, com ferocidade.
Saulo- Meu amor também foi a primeira vista,
Quando vi seu sorriso,
Acho que não é preciso
Como era linda a Rita.
Ricardo- Não, não é preciso.
Saulo- Quando você entrou na vida dela,
Ela começou a sair da minha,
Sabe, te odiei naqueles dias,
Você e suas poesias,
Toda aquela maldita ladainha,
Aquela coisa toda assim, singela,
Confesso que até te desejei mal,
Mas Ricardo temos que convir
Que essa é a reação normal
Para um sujeito na minha situação.
Ricardo- Certíssimo, com toda razão,
Eu com certeza teria a mesma reação.
Saulo- Mas depois percebi que a Rita
Tava mais feliz, estava até mais bonita.

Os dois se viram para ver a foto na parede. Saulo fica visivelmente impressionado com o retrato.

Ricardo- Foi tirada três dias depois de nosso enlace
Veja as marcas de felicidade em sua face
Céus, como era linda
Foi durante nossa lua de mel em Olinda.
Saulo- Você acha que ela agora
Está conseguindo ficar feliz
Vendo você assim tão triste?
Ricardo- Me diga se por acaso existe
Algum motivo pra eu não me sentir infeliz?
Saulo- Claro, a vida não parou lá fora.
O mundo não parou de girar
O sol não parou de brilhar
Eu fiquei muito tempo querendo morrer
Depois que ela foi embora
Mas a gente tem que acreditar
Que cada um tem sua hora,
Eu também fiquei mal
Tive muito pensamento negativo
Tomei muito antidepressivo
Mas cheguei a conclusão que a Rita,
Não queria me naquele estado
Eu compreendi que afinal
Eu tinha que tocar a vida pra frente.
Ricardo- Eu não consigo, por mais que eu tente
Toda noite sonho com ela
Então acordo, acendo uma vela
E rezo por sua alma,
Mas nada disso me devolve a calma
Pra dormir de novo,
É então que a insônia me persegue
Saulo- Você tem que tomar uma atitude
E tem que ser já… tem que ser logo
Sei lá, procure um psicólogo
Desabafe, não sei, alegue
Qualquer coisa que sinta…
Ricardo- Psicólogo é pra homem caduco
E eu ainda não estou maluco.

Luz no set do cemitério.

Beto- Pois é dona Rita
É o que eu lhe digo
O homem está ficando maluco,
É uma atitude muito esquisita
De não sair nunca de seu abrigo
Ficar trancado em casa feito um eunuco
O homem está ficando pirado
A senhora tem que ajudar o seu Ricardo.

Luz em Ricardo e Saulo.

Saulo- Ora, não era você que dizia que de louco
Todo mundo tem um pouco,
Ou era só conversa fiada?

Luz no set do botequim.

Carlos- Tenho pena do Ricardo
Era um cara tão bom, tão direito,
E agora está ai desse jeito.
É, a solidão é uma coisa que arrasa
Ele não faz nada pra evitar
Nunca sai daquela casa,
Nem mesmo para passear,
Tomar ar,
Ver o sol, o lusco-lusco.
Quincas- É desse jeito que já vi muito homem ficar maluco
E depois que o cara pira não tem jeito.

Luz em Ricardo e Saulo.

Ricardo- Frases são palavras ao vento…
Saulo- E onde está todo aquele sentimento,
Que você sempre defendia
Em sua poesia?
Ricardo- O que adiantou minha obra escrita,
Minha obra vivida? Maldita
Obra. Ela morreu junto com a Rita.

Luz no botequim.

Carlos- Eu tenho medo da loucura.
Como pode, o amor, uma coisa tão pura
Se transformar em tortura.

Luz no cemitério.

Beto- Sei lá dona Rita, aparece
Pra ele, se a senhora está no céu, desce
E vem dar conselhos pro coitado,
Sei lá faz uma coisa, vem e diz,
Pra ele viver, ser feliz….

Luz no botequim.

Quincas- O comportamento dele é muito estranho
Não sai, ouvi dizer que nem toma banho,
Não faz mais a barba,
Desse jeito ele logo se acaba.

Luz em Ricardo e Saulo.

Saulo- O que eu tinha que fazer, já fiz
Vim aqui pra dizer pra você se tratar
E tratar de ser feliz
E se destrancar.

Ele sai. Ricardo vai até a parede apanha o retrato e o caricia, se deita no sofá e se abraça ao retrato, dorme. Luz sobre o botequim onde Carlos e Quincas já estão na terceira garrafa. Na sala entram Débora e Dulce, ambas portam-se como se Ricardo não estivesse ali.

Débora- Tenho muita pena do meu irmão
Coitado sofrendo com a morte
Da Rita, pobre, o seu coração
Ainda bate por que é muito forte
Mas ele já tentou morrer,
E foi por mais de uma vez.
Dulce- Deus me livre dizer, mas talvez
Tivesse até sido melhor do que viver
Assim, jogado pelos cantos
Ai todo jururu e chio de prantos.
Débora- O que é isso mulher, está louca
Bate nessa boca.
Dulce- Não falo por maldade.

Luz no cemitério.

Beto- Tudo isso dona Rita
É uma saudade
Que é sem tamanho
Um sentimento estranho
Que arrasta o pobre, de alma aflita,
Para um poço.
A saudade põe uma corda
Em torno do pescoço
Da gente, e quando a gente acorda
Já é tarde demais…

Luz em Débora e Dulce.

Débora- Dulce, isso não se faz
Ficar ai desejando a morte do rapaz.

Luz no cemitério.

Beto- A senhora sabia dona Rita
Que ele já tentou o suicídio
E que se não fosse o seu Ovídio,
O jardineiro, ele teria morrido?
Se o velho não tivesse o socorrido
O pegado e corrido
Para o hospital.
A senhora acredita
Ele tomou um monte de comprimido
E ficou muito mal.

Luz em Débora e Dulce.

Débora- Lembro quando ele tentou
A morte, tomou um monte de remédio de dormir
Foi por Deus que o Ovídio o encontrou
E o levou para o cemitério,
Depois daquele dia nunca mais o vi sorrir
Quando estava desacordado
Tinha um sorriso de lado a lado,
Parecia estar até muito feliz.

Luz no cemitério.

Beto- Não morreu por um triz
Pois é, aquele dia foi fogo
Fizeram uma lavagem no estômago
E ele se recuperou
Mas depois tentou de novo….

Luz em Dulce e Débora.

Débora- Quando ele tentou de novo
Fui eu quem o encontrou
Estava desmaiado aqui no chão
Tinha tomado quase o dobro dos comprimidos
Da primeira vez….

Luz no cemitério.

Beto- No total foram seis
Vezes que ele tentou parar o coração
Todas com comprimidos
Mas com o tempo ele desistiu
E passou a viver trancado naquele casarão
Não atende o telefone, não responde
As cartas, o tempo todo se esconde
Dos raios do sol, nem mesmo abre a janela…

Luz em Dulce e Débora.

Dulce- Tudo por causa dela
Débora- Não fale dessa maneira
A Rita não tem culpa de nada
O Ricardo sempre foi assim
Sempre teve esses sentimentos transbordantes
Mas é bem verdade, que antes
Da Rita tudo tinha fim,
Ele não ficava tanto tempo assim chocado
Uma vida inteira
Sempre se apegou as criações
Quando morria um bichinho
Eram dias de lamentações
Mas por nenhum teve tanto carinho
A esse ponto, onde já se viu ficar assim…
Dulce- Ele não perdeu nenhum bichinho de estimação
Ele perdeu quem mais amava, isso sim
Não tem nem comparação.

Luz no botequim.

Carlos- Ricardo sempre foi temperamental
Por pouco saia do normal
Perdia o controle, poeta sentimental
O tipo de homem sensível
Que acha que é impossível
De viver sem a amada,
O tipo de cara que acredita em um conto de fada.
Quincas- Sei como é o camarada
No fundo um ótimo sujeito
As mulheres querem homens desse jeito
Um cara capaz de fazer uma declaração
De amor em um praça cheia de gente
Ou dentro de uma lotação
No meio de um culto crente
Quando o pastor estiver falando em Deus
Ele diz: Lindos são os olhos teus!
Esse tipo de maluco apaixonado.
Carlos- Assim mesmo que era o Ricardo.

Luz na borda do palco, onde estão Saulo e Rita.

Saulo- Como é ele? Como é esse sujeito?
O que ele tem que eu não tenho, hem?
Rita - Ei Saulo, não precisa falar desse jeito.
E o que é que tem?
Saulo- Minha namorada está apaixonada
Por outra cara, e ainda pergunta o que é que tem?
Rita- Assim não vai dar pra gente conversar nada.
Saulo- E o que é que quer conversar?
Rita- Eu.
Saulo- Então pode falar.
Rita- Não queria que terminasse assim
Não queria te ver magoado comigo
Queria que continuasse sendo meu amigo.
Saulo- Pra ser sincero
Eu não consigo
E nem sei se quero!
Como é esse sujeito?
Rita- Ele é legal, é escritor,
Ele me fez um soneto,
Sabe, um poema de amor.
Saulo- Você está me tocando por um poema?
Rita- Não estou te trocando
Estou apenas dizendo que não dá mais.
Saulo- Por que? Qual é o problema?
Rita- Acho que estou amando
Esse rapaz!
O escritor,
Olha o poema que ele me fez….
Saulo- Não quero ver essa porcaria
Pra mim esse negócio de literatura
Essa babaquice de poesia
É coisa de veado, é frescura!
Rita- (lendo) “É tão linda tua tez.”
Ai que amor
Que ele sente por mim….
Saulo- Você ainda lê a prova da traição
Rita- Traição? Você está ficando demente?
Venho aqui, abro o meu coração
Tento achar uma saída pacifica pra gente…
Saulo- Onde ele mora?
Rita- Não sei.
Saulo- Como ele se chama?
Rita- Ricardo.
Saulo- O que foi que ele te falou?
Rita- Disse que me ama.
Saulo- E você?
Rita- Eu gostei.
Saulo- O que mais te falou?
Rita- Disse que me adora
Que quer ir embora
Fugir comigo….
Saulo- Pra onde?
Rita- Qualquer lugar serve de abrigo
Qualquer caverna a gente se esconde
Saulo- não vê que isso é um absurdo?
Vê se da pra crer, vê.
Rita- Vou fugir com ele, não importa
Pra onde, não interessa o lugar,
A gente só quer paz pra se amar,
Não interessa qual a rota.
Saulo- Que bobagem, pra que fugir
Por que não podem viver aqui, ora
Bolas, pra é que têm que ir embora?
Rita- Não sei, é mais romântico, não?
Saulo- Nessas horas não serve essa bobagem de romantismo
Tem é que agir com a razão,
Senão o sofrimento é muitíssimo
Grande, não dá pra agir com o coração.
Rita- Não sei, pode ser que você tenha razão.
Saulo- Como o conheceu?
Rita- Outro dia
Andava pelo bairro e avistei
Um homem que sentado escrevia
Fazia um poema, queria uma rima, eu dei.
Queria uma rima pra cometa
Eu disse roleta
Eu disse bicicleta.
Saulo- Bicicleta, não rima totalmente
Pelo menos não da maneira correta
Só, quem sabe, gramaticalmente…
Rita- É, eu sei
Mas nesse detalhe não hora nem pensei.
Saulo- E depois?
Rita- Ficamos conversando.
Saulo- Sozinho, os dois,
Não havia mais ninguém por perto?
Rita- Não, o lugar estava deserto.
Saulo- O que mais que aconteceu?
Pode ir me contando…
Rita- Ele me falou sobre poesia
Me falou sobre os poetas
De que ele mais gostava….
Saulo- Só fizeram isso? Nada mais?
Rita- Ele me falou da diferença
Entre uma ode e uma elegia,
Me fez notar a presença
Do amor que os poetas
Derramam sobre seus versos e mais,
Me fez sentir que o amor de fato existe,
Me fez pensar sobre as coisas que gostava
E encara-las como poesia…
Saulo- O que mais disse esse Dom Juan da freguesia?
Rita- Não fale assim.
Saulo- Quero saber Tim-tim por Tim-tim.
Rita- Pois nada mais digo,
Você não pode ficar me controlando
Você é só meu ex, não é meu dono…
Está me escutando?
E se não quiser ser meu amigo
É problema seu, vejo que foi um engano
Eu vir aqui te contar tudo,
Tentando ser uma pessoa honesta
Apenas agi como uma besta.
Saulo- Rita, desculpe-me, o culpado sou eu,
Que não soube te dar valor
Pensei que tudo apenas se resumia no amor
Que sinto, esqueci de te dar
Carinho, conforto e por fim te sufoquei ….
Rita- Não foi isso que aconteceu,
É que eu nunca te amei,
Não um amor de verdade,
Foi uma ilusão,
Acho que eu não amava você e sim a situação,
Essa sensação de segurança
Como se eu fosse apenas uma criança
Que precisasse de um colo pra me proteger,
Mas acabou, atingi a maioridade,
Agora vou ter uma vida adulta
Arregaçar as mangas e partir pra luta,
Enfim, viver de verdade….
Saulo- Como chegou a essa conclusão?
Como esse sentimento
Invadiu o teu coração
Dessa forma tão repentina?
Rita- Não sei, acho que eu deixei de ser aquela menina
Que tinha medo da vida,
Esse medo que sempre insiste
Em transformar tudo em ressentimento
E faz com que tudo esfrie no coração,
Esse medo acabou, sinto
Que estou pronta.
Morreu aquela menina tonta,
Que nunca seguia o próprio extinto,
Que tinha medo de desobedecer as leis,
Que tinha medo de viver,
Tinha medo de ser feliz.
Saulo- Me diz Rita, desobedecer que leis?
Viver que vida?
Provar de qual felicidade?
Rita- Ah, Saulo, as leis da hipocrisia
Viver a vida com a qual sempre sonhei
Provar a felicidade de cada dia
Cantar, dançar pelas ruas da cidade,
Ah, Saulo, as pessoas são tão hipócritas,
E escondidas por ai quantas Ritas
Não existem? Presas a maldita lei,
Mortas pela própria vida
E comemorando a própria infelicidade?
Saulo- Isso tudo pode ser muito bonito
Na teoria
Mas na pratica será que funciona esse mundo
Tão cheio de poesia,
Sinceramente, eu não acredito
Que você vá conseguir mudar esse mundo
Em que diz estar presa…
Rita- Ah, Saulo, não tenha tanta certeza
Vou fazer tudo o que eu puder
Pra ser mais feliz, mais mulher,
Ser mais alegre, mais forte.
Você não me deseja sorte?
Saulo- Não sei o que dizer
Rita- Diga que torce por mim.
Saulo- Não é bem assim,
Você sabe Rita,
A vida vai ficar sem graça
Vai ficar muito esquisita
Sem você por perto,
Mas se você acha que está no caminho certo,
Não há nada que eu faça
Para que você mude de atitude
Mas meu coração não se ilude….
Rita- Gostei de você o mais que pude
Saulo- Eu sei.
Rita- Não me culpe se eu não te amei…

Apaga-se a luz e acende-se no botequim, onde já está chegando Éter. Quando ela entra Carlos e Quincas estão caídos sobre o balcão. Ele entra e vê a quantidade de garrafas vazias sobre o balcão. Pega uma cheia. Abre com os dentes. Olha o liquido.

Éster- É realmente uma coisa que me intriga
Essa submissão do homem a pinga.

Procura um copo e acha atrás do balcão, enche-o e bebe todo de um único gole. Está abstrata.

Éster- Sempre quis dar um trago
Sentir o gosto amargo
O calor descendo garganta abaixo.
Homem quando bebe fica macho,
Mas mulher fica doce,
Doce como se fosse
Mel, nem mesmo a bebida tem o poder
De me roubar o pudor,
Mesmo com esse fogo, esse calor
Descendo por minha garganta,
Nem mesmo esse fogo espanta
Essa docilidade que a mulher tem.

Ela bebe mais, e mais. Carlos se mexe mas não acorda. Éster está como se longe, os olhos perdidos, em transe.

Éster- Meu pai sempre chegava bêbado à noite
Batia na minha mãe, era um açoite
Batia no Jorge, batia em mim,
Mas nunca bateu na Rita
Ele a olhava de uma forma esquisita
Meio assim…assim…assim….
Ah como minha mãe sofria
Como meu irmão Jorge Sofia
Deus, e como eu sofria
Não me esqueço como a Rita sorria,
Mas não era por maldade….

Ela abandona a garrafa e procura outra e mais uma vez abre com os dentes e enche o copo.

Éster- A Rita sempre foi pura
Nem bêbado meu pai tinha a capacidade
De tocar nela, nem mesmo com toda a amargura
Que ele tinha. Ela era uma criatura
Que ele não conseguia tocar,
Quando ele morreu,
Todos nós choramos, menos ela
Ela apenas acendeu uma vela
E ficou a soprar, soprar, soprar
Só isso que aconteceu…

Ela também se senta ao balcão e bebe até cair junto com os outros. Luz no cemitério.

Beto- Só conversei com a senhora
Uma vez dona Rita, não sei por que agora
Me lembrei disso, faz mais de um ano.
Foi exatamente naquela hora
Que eu me apaixonei,
Não sei se a senhora sabe, dona Rita
Mas antes daquele dia
Eu não bebia,
Eu não escrevia poesia
Quando a senhora entrou no botequim
Do Quincas pra comprar pão,
Eu sei que quando entrou nem olhou pra mim,
Mas naquele momento o meu coração
Aqui dentro do peito
E naquela mesma noite escrevi meu primeiro soneto.
E tomei o primeiro porre de verdade.
Foi uma conversa curta entre nós
Mas valeu a pena só se ouvir a voz
Da senhora dona Rita
Uma voz tão doce, tão bonita.
Eu nunca tinha ouvido uma voz assim
Tão doce, tinha sim,
É verdade, um vibrar de clarim
Era doce como mel, feito um pudim
Que quando se prova não se esquece o gosto,
E como era lindo o rosto
Da senhora, dona Rita,
Um rosto esculpido por um artista
Todos os traços numa leveza
E somados transformavam-se em beleza,
Uma beleza majestosa
Como a beleza que só tem uma rosa,
Uma flor,
Naquele momento, ali exatamente,
Nasceu em mim e germinou o amor,
Essa coisa que quando a gente sente
Dona Rita não dá pra esconder,
Mas a senhora era casada, tinha dono,
Foi então que comecei a beber,
A escrever versos nas noites sem sono.
Amei a senhora em silêncio, com respeito,
Amei a senhora em cada verso dos meus
Poemas, em cada estrofe dos meus sonetos
Ah, dona Rita, foram todos teus.
O amor me arrastou na avalanche
Dos seus escolhidos, não tive nenhuma chance
De resistir, mas sabia que um romance
Era uma coisa sem cabimento
Era melhor sufocar o sentimento,
Mas ele não se transformou
Naquilo que chamam de ressentimento,
Continuou sempre puro
Dona Rita. Foi muito duro
Mas eu ainda resisto,
E nem sei por que insisto
Em estar aqui falando do passado.
Pronto falei! Está falado….
E é isso mesmo que a senhora escutou….

Luz sobre o botequim. Éster já está desperta e bebe, tem o tom distante de antes.

Éster- todos amaram mais a Rita
Sempre a acharam a mais bonita
Ela sempre foi a mais desejada
A mais beijada,
Sempre foi ela a mais formosa
Sempre a mais gostosa
Foi pra ela todos os carinhos
Foi pra ela que escreveram versinhos…

Bebe com fúria.

Éster- Pode parecer que não
Mas eu amava ela, até eu.
Mesmo ela roubando tudo que era meu
Meu carinho foi a toda prova
Mesmo eu sendo a caçula, a mais nova,
Foi para ela toda a atenção,
Eu também tinha uma fascinação
Estranha pela Rita,
Sabia que ela seria uma grande artista…

Bebe ainda com mais fúria.

Éster- Como eu sabia?
Não sei, mas sabia
Sentia
De alguma maneira eu intuía
Mas também sabia que algo iria
Mais cedo o mais tarde acontecer,
Alguma tragédia,
No fundo sabia
Que ela iria morrer
Muito cedo.
Eu tinha medo
De que quando chegasse o momento
Eu não estivesse preparada
Para socorrer o Ricardo
Socorrer todo mundo,
Por que no fundo, no fundo,
Deles todos eu sou a mais forte
Tenho forças para encarar a morte
Como uma coisa natural,
Tenho que vir e convir que afinal
Morrer é tão estranho quanto viver,
Mas é assim que tem que ser…

Ela bebe, de repente parece acordar do transe, tenta acordar Carlos. Depois de alguns instantes ele acorda confuso.

Carlos- Tive um sonho estranho Éster,
Sonhei que estava em um quarto com uma mulher,
Mas não conseguia ver o seu rosto
E quando a beijava sentia um gosto
De fel e sangue gelado…

Éster está novamente em transe.
Éster- Não me diga que era a Rita.
Carlos- Não sei, estava tudo embaçado,
Não dava pra firmar a vista.
Éster- Sei que estava sonhando com ela.
Carlos- Por que logo com ela,
Com tanta mulher
Por ai, por que não com você, Éter?
Éster- Por que ela sempre foi a mais bonita.
Carlos- Eu nunca achei.
Éster- Ninguém gostava de mim, eu era a esquisita.
Carlos- Isso não é verdade
Você sempre foi muito bonita
E eu te amei
E te amo com uma intensidade
Que é sem tamanho.
Éster- Mas até agora estava sonhando com a Rita.
Carlos- Disse que não dava para identificar.
Éster- Isso foi para me enganar.
Carlos- Foi um sonho muito estranho,
Que eu quero esquecer.
Éster- Ninguém esquece a Rita
Ela tem essa força maldita
De capturar a pessoa e a prender…

Ela aparentemente sai do transe e tenta acordar Quincas .

Éster- Aposto que ele também está sonhando
Com aquela vadia.
Sempre foi assim,
Todo mundo sempre amando,
Fazendo poesia
Somente pra ela, nada pra mim.
Acorda, seu Joaquim!

Quincas acorda também confuso.

Quincas- Que pesadelo…
Obrigado por me acordar dona Éster,
Eu estava sonhando com uma mulher….
Carlos- E como ela era?
Quincas- Tinha um corpo de modelo,
Mas o resto era de uma fera.
Éster- Vai ver que era a Rita.

Luz no cemitério.

Beto- Toda noite dona Rita
Eu sonhava, era um sonho lindo,
Eu esperando, esperando, esperando
E a senhora sempre vindo
Linda, suave, sorrindo,
Mas a senhora nunca chegava
Quando ia chegando
Eu sempre acordava.

Luz no botequim.

Carlos- Meu amor, isso já é mania
De perseguição com a pobre coitada…
Éster- Mania de perseguição? Que nada.
Vocês vão saber a verdade um dia
A Rita não era essa santa
Que todo mundo diz, até me espanta,
Ela odiava todo mundo,
Odiava com um ódio imenso, profundo…

Éster cai novamente na abstração, o transe parece mais forte que antes.

Éster- Eu a conheci muito bem
Não foram nem um, nem dez, nem cem
Dias de convivência
Foi toda uma infância
Uma vida inteira ….

Luz no cemitério.

Beto- Sonhava a noite inteira
Com a senhora.

Luz no botequim.

Éster- Ela tinha um complexo de superioridade
Se achava no direito de fazer maldade…

Luz no cemitério.

Beto- A senhora sempre tão bondosa
Tão prestativa, tão caridosa

Luz no botequim.

Éster- Ela não gostava de ninguém
Nem a mim ela queria bem,
Era uma peste…

Luz no cemitério.

Beto- Pena que agora só reste
A lembrança de sua bondade,
Isso aumenta a saudade que sinto…

Luz no botequim.

Éster- Pra falar a verdade,
Desejo que ela queime no quinto
Dos infernos…

Éster de repente acorda do transe. Luz no cemitério.

Beto- A senhora tinha olhos tão fraternos,
E como eu amava
Aquele olhar,
Era como o ar
Que eu respirava…
Céus, como eu a amava….

Luz no botequim. Éster está confusa.

Éster- O que foi que aconteceu?
Quincas- A senhora bebeu.
Éster- O que foi que eu falei?
Carlos- Você contou…
Éster- O que foi que eu contei?
Carlos- Contou que odeia a Rita…
Éster- Eu não odeio a Rita.
Carlos- Você a detesta.
Quincas- Disse que ela não presta.
Carlos- Que era um traste.
Quincas- Uma peste.
Carlos- Que não valia nada.
Quincas- Que era uma vadia.
Carlos- Que era uma safada.
Quincas- Que sempre a odiou.
Carlos- Que ela era maldosa.
Quincas- Disse que ela tinha mania
De se achar superior e mais,
Disse que ela vivia fazendo maldade…
Éster- Não, eu não disse isso, não é verdade.
Carlos- Disse que a odiava.
Éster- Mentira!
Carlos- Que ela sempre lhe despertou a ira.
Éster- Impossível!
Quincas- Disse que ela era horrível.
Éster- Ela era muito bonita.
Carlos- Que ela era uma vigarista.
Éster- Eu não acredito!
Quincas- Disse que ela era um espírito
De porco imundo,
A pior criatura do mundo.
Éster- Não, não, não
Não disse nada disso, não, não, não….

A luz se apaga e se acende no cemitério, onde Beto põem a garrafa sobre a sepultura( depois de beija-la demoradamente) e sai em passos lentos. Acende-se a luz do botequim, enquanto Quincas arruma as garrafas, Éster está aparentemente desmaiada e Carlos sai a levando no colo. Quincas passa o pano no balcão e também sai. Ricardo entra carregando Rita nos braços, ela está vestida de noiva. Na mesma sala, pelo lado oposto, entra Saulo com um maço de cartas, senta-se. Ricardo e Rita olham tudo ao redor e saem. Saulo começa a rasgar as cartas. Ouve-se a música Dorme Rita. Enquanto a música é executada Rita volta, já vestida normalmente. Ricardo entra e senta por detrás da maquina. Ambos estão felizes. Saulo muito triste, Rita se deita no sofá.

Música: Dorme Rita.

Dorme, dorme, dorme,
Rita teu sono enorme,
Dorme, dorme Rita
Que lá fora o vento já se agita
Em teu nome.

Dorme, dorme Rita
Que a manhãzinha já grita
Os primeiros raios de sol,
Dorme, dorme Rita
Acordada debaixo do lençol.

Acorda Rita
Boceja e grita
Corre Rita
Salta e se agita
Afoga o cansaço
Esquece o bagaço
E me diz o que eu faço
Com esse abandono
Com essa falta de sono.

Cai o pano- Fim do Primeiro Ato.

SEGUNDO ATO

Quando o pano se abre toda cena está escura e a musica em seus últimos acordes. Acende-se então a luz total, Quincas está no bar e limpa o balcão. Beto dorme no sofá e tem a cabeça de Dulce e os pés no colo de Débora. Ricardo está na escrivaninha, triste como antes. Saulo ainda na mesma posição lê uma carta. Jorge e Éster estão próximos da sepultura. Somente Carlos não está em cena.

Ricardo- Quanto tempo faz?
Saulo- (lendo a carta) Te desejo paz…
Beto- Dá um sono
Ricardo- Mais de um ano…
Beto- Uma vontade de dormir…
Saulo- (lendo a carta) Desejo-te felicidade…
Ricardo- Parece uma eternidade…
Beto- Mas eu não posso dormir…

Beto se levanta e então se senta ao lado de Saulo.

Ricardo- O que foi que eu fiz?
Débora- Esse ano por acaso é bissexto?
Ricardo- Como fui otário,
Não fiz nada certo
Dulce- Não sei, vê no calendário…
Débora- Não tem nenhum nessa casa
Ricardo não quis.
Dulce- Tem um lá no meu quarto….

Dulce sai.

Saulo- Ela estava triste quando escreveu
Esta carta
Sinto uma tristeza
Nas palavras da Rita
Muita tristeza…

Dulce volta sem o calendário.

Dulce- Não achei…desapareceu…

Senta-se no lugar de antes. Todas as luzes se apagam menos a do cemitério.

Éster- Carlos foi embora,
Coloquei-o porta a fora,
Acho que estou ficando doente
Maluca, doida, demente….
Jorge- O que foi que aconteceu?
Éster- Toda noite ele sonhava com a Rita
Isso me enlouqueceu
Fiquei possessa, aflita
Com um ódio sem tamanho, sabe
Aquela raiva que não cabe
Aqui dentro, que vaza pela garganta
E não há nada que faça parar, nada adianta…
Jorge- Ele te ama.
Éster- Eu sei.
Jorge- Então? Por que não o chama
De volta
Diz que foi um momento de revolta.
Éster- Não adianta
Eu não consigo, eu vacilei,
Não consigo mais
Olhar pra ele, ver seu rosto
É só olhar e me vem um desgosto.
Sei que ela amava ela, a Rita.
Jorge- Isso é um absurdo
Você tem cada idéia louca, Éster,
Não consigo te entender.
Éster- Sei que estou esquisita
Amo o Carlos, mas o absurdo
É que quando fecho os olhos vejo
Ele junto com a Rita
Em um longo beijo…
Jorge- Mas isso nunca aconteceu
Éster- Eu sei…
Jorge- Então?
Éster- Acho que eu sonhei
Sonhei com os dois em uma cama
Enorme. Um sonho sem nexo
Era uma cama se casal
E os dois no êxtase do sexo,
Um coito meio humano, meio animal.
Jorge- Paranóia…
Éster- Não. Minha cabeça está jóia!
O sonho sempre se repete
Eles fazem sexo em todo lugar
No sofá, no chão, no carpete…
Jorge- Ele te ama!
Éster- Já disse que sei,
Mas não me sai da cabeça
A imagem dos dois naquela cama
Nada faz com que eu me esqueça.
Agora me lembrei
De outro sonho que ando tendo,
Até parece que estou vendo….

Ela assume mais uma vez o transe de antes.

Éster- Os dois no meio de uma floresta
Só arvores, fora a isso deserta
De animais, apenas os dois,
Correndo nus pelo meio do mato
Ah, Jorge e depois
Eles se amavam em um pasto
Entre vacas e bois…
Jorge- Besteira.
Éster- Eu tinha esses sonhos a noite inteira
Todo santo dia
Acordava gritando já sem energia
Pra poder enfrentar a vida.
Jorge- E descontar nele foi a saída?
Éster- Foi preciso,
Necessário eu fazer isso…

Luz no botequim, momento em que entra Carlos com uma mala.

Quincas- Ei seu moço, está de partida?
Carlos- Me vou com passagem só de ida
Éster me abandonou…
Quincas- Como assim?

Luz na sala.

Saulo- Esse é o fim,
A última carta,
A maldita frase que mata
Todos os meus sentimentos:
(lendo a carta) Te desejo sorte, sem ressentimentos….

Ele rasga a carta.

Carlos- Ela andou tendo pesadelos
Acordava com os olhos vermelhos
De tanto chorar.

Luz no cemitério.

Éster- Minha vida era sonhar
Com os dois me traindo
A todo momento, fosse na sala,
Na cozinha, no mato
Na casa toda, em qualquer ala
Acredita que até no meu quarto.
Aqueles sonhos foram me ruindo
Me corroendo.
E pra falar a verdade, ainda está doendo…
Jorge- Isso é loucura
Éster- Não importa
Você até pode dizer que é frescura
Da minha parte,
Mas quero que ele vá para o raio que a parta
Que morra assim como a Rita.

Luz no botequim.

Carlos- Tinha sonhos comigo
Dizia que tinha me amado
Tanto, e eu tinha me tornado
O inimigo!
Vivia dizendo que eu não prestava
Que eu vivia pensando na Rita
Vê se tem cabimento, até dava
Pra ver o ódio no olhar da Éster.
Imagine, isso só pode ser insanidade…

Luz no cemitério.

Éster- Eu tenho momentos de sanidade,
Mas estou ficando maluca,
Minha cabeça vive criando fantasias
Eu estou ficando caduca
E cada dia, mais doida, mas demente…

Luz na sala.

Dulce- Tem um calendário, Ricardo?
Ricardo- Isso é coisa do Diabo.
Débora- Mas acontece que a gente
Só está querendo saber dos dias.
Ricardo- Hoje é sábado.

Luz no botequim.

Carlos- Foi assim do nada,
Um dia ela me acusou de traição,
Fiquei sem entender nada,
Ela me unhou, me mordeu
Puxou meus cabelos
E não adiantaram meus apelos,
Ela estava furiosa e me bateu
De um jeito que fiquei sem ação
Parecia que ela estava até possuída pelo cão.

Luz na sala.

Ricardo- O demônio entrou nessa casa
Por isso eu rasguei todos os calendários .
Queimei, tudo virou brasa,
Depois cinza, depois fumaça.
Eu sentia o bafo dele, um cheiro de cachaça
Ficava me chamando de fracassado,
Dizendo: - Vai, escreve seu veado,
Quero ver você fazer literatura!
Eu então pegava os rosários

Ele mostra os rosários que estão no seu pescoço.

Ricardo- Então ele corria para os calendários
Dizendo: Hoje é dia, e por toda a semana
Vou te tentar, até você renunciar
A tudo e mergulhar na loucura…

Débora e Dulce se benzem.

Ricardo- Ele aqui com a cara mais sacana
Desse mundo, dizendo: Ela está no inferno
Queimando no fogo eterno!

Luz no cemitério.

Éster- Era mais forte do que eu.
Eu quis matar meu marido.
Algo me dizia que ele havia me traído,
Como se alguém estive me soprando
Bem aqui no pé do ouvido
E numa noite foi pior…aconteceu….

Luz na sala.

Ricardo- Eu não conseguia mais dormir,
E quando conseguia tinha pesadelos
Eu gritava, mas meus apelos
Não valiam nada, não conseguia mais sair
A luz do sol machucava a vista,
Ficava aqui o dia inteiro,
A noite inteira feito um monge budista
Pensando, meditando, o travesseiro
Já me dava insônia só de olhar.
E ele me falando mal da Rita,
Dizendo que ela iria queimar
Por toda a eternidade….

Luz no cemitério.

Éster- Peguei o Carlos com crueldade
Bati de uma forma incrível
De uma forma que me era impossível
A raiva vinha e eu batia
Batia com uma força que não sabia
De onde vinha, e nada me detia,
Batia como se não fosse eu,
Uma fúria cega…sanguinária
Imaginava que batia na Rita.
Eu queria matar a desgraçada
E nada me acalmava…nada…
Sentia o sangue na minha boca
E então batia, nem refletia
Estava possuída por uma fúria louca
Louca e aflita…

Luz na sala.

Ricardo- Dizia que tinha muito desgraça
No seio dessa família, e que a Rita
Era a grande culpada.
Dizia que ela iria arrastar todo mundo
Para o meio da lama
E ria, como se achasse graça
Em toda a minha aflição
Então eu gritava e ele dizia: - Isso, grita
Seu veado que não vai adiantar nada,
Grita seu maldito, seu porco imundo,
Nada vai salvar aquela vadia chama
Ela vai queimar pela eternidade afora,
Eu gritava para ele ir embora.
E o desgraçado só sorria
Me olhava com olhos desse tamanho
E ria, dizia, vem, vem que te arranho
Seu veado, seu porcaria….

Ao final da fala está exausto, senta-se na escrivaninha. Débora e Dulce estão bastante assustadas, e mais uma vez ignoram a presença dos demais.

Dulce- Parece que ouço coisas…esquisito.
Débora- Não será o zunido de algum mosquito?
Dulce- Não. É uma voz bem profunda..um som
Que não consigo identificar, mas tem um tom
Meio estranho, está ouvindo?
Débora- Não. Não ouço nada.

Luz no cemitério.

Jorge- Você não gostava da Rita
Éster- Isso não é verdade.
Jorge- Não minta
Pode me contar seja lá o que sinta.
Quero que seja sincera comigo,
Além de seu irmão sou seu amigo…

Na sala Beto e Saulo parecem não estar ali, nenhum dos dois parece notar a presença de mais ninguém. E falam para si mesmos.

Saulo - Ninguém gostava da Rita
Era tudo falsidade desse povo
O jeito alegre dela sempre foi um estorvo
Pra todo mundo…ninguém
Gosta de ver o visinho bem,
É muito hipócrita essa humanidade.
Beto- Só por que ela era bela
Não gostavam…odiavam ela,
Pensam que eu não sei…até o marido
Tinha ciúmes, medo de ser traído.
Por isso enlouqueceu
Depois que a coitada morreu.
Mas ela era mulher honesta
Era mulher muito certa…
Saulo- Fui o primeiro homem dela
Beto- Garanto que ela se casou virgem..
Saulo- Nossa primeira vez foi na praia
Deitados na areia, tenho a imagem
Ainda gravada aqui na memória…
Beto- Era até mesmo difícil de ela usar mini-saia…

Luz no cemitério.

Éster- Ela era muito egoísta,
Queria tudo pra ela…
Jorge- Ela no fundo era carente
Sentia muita solidão
Todo o amor que lhe davam não era verdade,
Era somente uma espécie de fascinação
E a coitada percebia…a gente sente
Ela no fundo sabia que era inveja…tudo
Não passava disso…pura falsidade
Só por que ela era a mais bela
As mulheres lhe detestavam, sei que parece absurdo,
Mas era isso que acontecia…
Foi assim com o nosso pai
Foi assim com Saulo; o primeiro
Namorado dela…um interesseiro,
Não era amor, era desejo
É um sentimento meio complexo
Ela despertava a ira nas mulheres
E os homens queriam apenas sexo…
Éster- Por isso eu a odiava?
Jorge- Com certeza,
Éster você ficava
Não só você, mas todas, indignadas com a beleza
Da Rita e por isso lhe queriam mal
Sou irmão dela, não podia sentir tesão
Pela minha irmã, por isso pude perceber
A reação de todos a seu redor….
Já você Éster
Foi movida pela maldita luxuria
Apesar de tudo isso é normal,
Pude perceber o que havia em cada coração
Das mulheres e dos homens que passaram
Pela vida dela…sei os que a amaram
E também os que a odiaram,
Mas foram muitos poucos que lhe tiveram amor….

Luz na sala.

Beto- Eu a amei!
Saulo- Eu a amei!

Luz no cemitério.

Jorge- Ninguém a amou…eu sei,
Até mesmo o marido…
Ele não a amava…apenas sentia-se atraído
Pela beleza
Da Rita….Ninguém a amou, tenho certeza.

Luz na sala.

Beto- Eu estava no bar, mas não bebendo
Estava espiando o tempo passar….
Saulo- Eu estava sentado numa calçada,
Vendo passar toda a mulherada…

Luz no cemitério.

Jorge- O único homem que a amou fui eu…

Luz na sala. Beto e Saulo parecem estar em transe.

Beto- Foi então que tudo aconteceu
Saulo- Ela passou na minha frente
Beto- Ela entrou no bar
Saulo- Assim do nada…de repente
Beto- Pra comprar pão…
Saulo- Alguma coisa invadiu meu coração.

Luz no cemitério.

Jorge- Só eu a amei de verdade…

Luz na sala. Os dois ainda em transe.

Beto- Tinha um sorriso tão lindo
Saulo- Estava com um vestido de chita.
Beto- Usava calça jeans e camiseta preta
Saulo- Tão bonita….
Beto- Ela veio vindo
Se encaminhando para o balcão…

Luz no cemitério. Jorge também está em transe.

Jorge- Somente eu gostei dela..eu sei
Que ninguém a amou
Os homens foram todos uns tarados…
Éster- Meu marido a amava…eu sei
Jorge- Não era amor, era tesão
Ninguém nunca a amou
Todos esses malditos bastardos
Só queriam prazer,
Mas ela se foi para nenhum deles a ter,
E um por um vão enlouquecer….
Inclusive eu….
Éster- E o meu marido?
Jorge- Ele era outro tarado
Aposto que a desejou…
Éster- Eu mato o desgraçado.

Luz no botequim.

Carlos- Nunca olhei para Rita
Quincas- Você acha que alguém acredita?
Carlos- Mas é verdade…
Quincas- É mentira tua
Você sempre a imaginava nua
Sendo totalmente sua
Gemendo, gritando o teu nome…
Carlos- Não é verdade.
Quincas- É verdade,
Eu também tinha essa mesma fome,
Essa fome de Rita.

Luz na sala. Saulo e Beto têm os olhos perdidos, ainda em transe. O mesmo acontece com os demais personagens.

Ricardo- Ela vivia sempre aflita
Todos os homens a queriam..que ódio.
Ela sempre assustada com o assédio,
Eu dizia que não tinha remédio
Quem mandou ela nascer daquele jeito
Linda, perfeita, gostosa, sem nenhum defeito
Tudo ali, coxas, bunda, peito
Tudo na medida certa…medida exata,
Era impossível ser casta…

Luz no botequim.

Quincas- Quando ela entrava por essa porta
Todo mundo a olhava,
Eu sei que ela gostava…
Carlos- Não, ela não gostava…era muito pura,
Era uma inocente criatura…

Luz na sala.

Débora- Estou ouvindo um ruído estranho
Dulce- Agora sou eu que não ouço nada…

Luz no botequim.

Quincas- Inocente a Rita, isso é uma piada?
Carlos- Quer apostar…
Quincas- Se apostar eu ganho!
Carlos- Ela era minha cunhada
A conheci razoavelmente bem,
Ela era uma pessoa boa…
Quincas- Muito boa, boa mesmo, hem?

Luz no cemitério.

Éster- Sempre desconfiei do meu marido
Que ele tivesse me traído,
Mas o pior de tudo
É que foi com a Rita…isso que é absurdo,
Me trair com minha própria irmã…

Luz na sala.

Saulo- Era cedinho…bem de manhã
E ela passou com seu gingado…
Beto- Eu fiquei todo arrepiado
Ouvi ela dizendo: Obrigada.
E o Quincas dizendo que não foi nada…

Luz no botequim.

Quincas- Era aqui que ela comprava pão
Aquele andar que ela tinha
Olhar reto, sem nunca olhar pro chão
A cintura fininha
Fazendo do corpo um perfeito violão
Era uma verdadeira tentação….

Luz na sala. Ricardo em transe, corre a escrivaninha e tira um revolver da gaveta.

Ricardo- Foi culpa do demônio, ele queria me matar
Eu pegava o revolver e o ameaçava
Não adiantava, ele ficava rindo sem parar,
O desgraçado ria, e nem disfarçava ,
Eu não podia simplesmente dar um tiro,
Por que tenho medo dessa arma,
Esse revolver maldito, sabe a que me refiro,
Eu tenho medo de sangue, acho que é karma,
Por isso nunca dei um tiro na cabeça
Tenho medo de sangue principalmente do meu,
E antes que eu me esqueça
O diabo não tinha, com certeza, como eu
Sangue. Ele ria do meu medo,
Dizia que eu ainda teria coragem
De sentar o dedo
No gatilho, mas ia ser minha morte,
Ia ser em um momento de raiva muito forte
Disse que é nesse momento que os suicidas
Realmente agem
E tentam contra as próprias vidas.
Por isso que eu usei comprimidos,
Eles eram mais simpáticos
Brancos, pálidos, quase sorridentes
Enquanto os doentes
Procuram a cura pros problemas asmáticos
Os problemas do coração
Os males dos nervos, do pulmão
Eu usava os comprimidos
Procurando outro tipo de alivio
Eu queria fugir do demônio…

Ricardo pega a foto de Rita.

Ricardo- Ele dizia que eu iria morrer de loucura
Que ia ser tão forte, tão sem cura,
Que eu não ia mais fazer literatura,
Não conseguiria escrever mais nada,
Ia ficar o dia todo numa agonia
Só pensando na Rita e na poesia
Que fiz pra ela, e que a desgraçada
Tava lá no inferno rindo de mim,
Mas eu não conseguia morrer,
Não conseguia dar um fim
Na vida…E não queria mais viver,
Toda vez que eu bebia os comprimidos
Alguém me levava para o hospital….
Tinha dias que eu via a Rita
Andando pela casa…tão sensual
Toda nua, com os cabelos compridos
Caídos sobre os ombros…sem a fita
Que ela sempre usava
Andava pela sala…desfilava
Nua…completamente nua
Mas eu não a podia tocar, era feito fumaça
Quando eu chegava perto ela flutuava
E aparecia noutro lugar qualquer. Nua,
Isso que era o pior de tudo,
Eu fechava os olhos e então ela falava
Nos meus ouvidos,
Era então que eu engolia os comprimidos
Pra tentar fugir
Pra tentar apagar, morrer, dormir….
E o diabo dizendo: Não importa o que faça
Não vai conseguir fugir da loucura
Eu sou a loucura
E a morte é a única cura,
Estarei com você toda noite, toda manhã
Toda tarde, e quando você se perguntar
Por que tudo isso acontece
A loucura vai ser a única resposta sã,
Quando você resolver fazer uma prece
Se ajoelhar e tentar rezar,
Você não se lembrará da oração
Não vai mais conseguir cantar
Pois já não existe mais nenhuma canção,
Nunca mais poderá amar
Por que a Rita vendeu o teu coração
E agora ele está cheio de amargura,
Você não vai mais conseguir sonhar,
Por que não vai conseguir dormir,
Pobre da tua literatura
Vai morrer seca, morrer sufocada,
Nunca mais vai escrever nada…

Nesse momento Carlos pega a mala se despede de Quincas e se vai.

Ricardo- A palavra vaio apodrecer dentro da sua boca
E não vai sair um único verso
E se sair vai ser tão perverso
Que não vai tocar nenhum coração …
Toda a sua rima será louca
Inconseqüente e destruirá qualquer paixão…
A primeira aparição do demônio foi em um sábado….
E tentei me matar pra fugir do diabo….
Débora- Loucura!
Dulce- Ricardo você enlouqueceu?
Ricardo- Débora, minha irmã querida
O amor por ela foi muito forte
E foi mais forte ainda sua morte,
Sim a loucura me venceu,
E quando eu vencer meu medo,
Quando a raiva for forte o suficiente
Eu sentar o dedo
Nesse gatilho e curar a minha mente.
Débora- Não, você não pode fazer isso,
A Rita não merece tamanho sacrifício!
Dulce- Meu Deus!
Saulo- Já falei que fui o primeiro homem dela?
Débora- Ricardo, a Rita era uma vadia,
Uma cadela!
Dulce- Meu Deus!
Saulo- Ela era virgem quando me conheceu…
Débora- Você precisa saber da verdade…
Ricardo- Você sempre teve inveja da Rita
Alias todas as mulheres
Por que ela sempre foi a mais bonita…
Débora- Ouvi muitas histórias…
Ricardo- Tudo mentira desse povo invejoso,
Mentira desse povo venenoso,
Essas cobras malditas…vadias
Que tinham inveja da Rita…
Débora - A Dulce também ouviu histórias….
Dulce- Meu Deus!
Ricardo- Mentira! Tudo mentira! Não acredito!
Esse povo é todo mentiroso e maldito!
Saulo- A gente fez amor na praia….
Beto- Fiz um poema pra ela todos os dias,
Mas ela nunca ficou sabendo….
Dulce- É verdade, ouvi algumas fofocas…
Ricardo- Isso mesmo, só fofocas
Coisas dessas malditas dondocas
Que vivem a cuidar da vida alheia…
Saulo- A gente se amou ali mesmo na areia….
Ricardo- Fofoca é só o que vocês andam fazendo!
Débora- Pare com essa maldita loucura,
Ela não era nem um pouco pura
Não era essa criatura
Que você imagina, não era nenhuma figura
Santa, a irmã a odiava!
Ricardo- Mentira, Ester a adorava…
Dulce- Ouvi outro dia…assim por acaso
Que Rita e Carlos tinham um caso…

Neste momento batem na porta. Todos ficam estacados. Saulo então, depois de breve indecisão, vai abrir a porta imaginária e por ela entra Carlos com a mala.

Dulce- Olha ai o traidor!
Débora- Traidor!
Ricardo- Não acredito nessa história
É coisa do demônio pra fazer discórdia..

Luz no cemitério. Jorge e Ester se sentam sobre a sepultura, ela põem a cabeça sobre o ombro do irmão e então ficam ambos imóveis.

Carlos- Não sou nenhum traidor..
Ricardo- Eu sei…

Saulo volta para seu lugar, mas antes pega a foto que foi deixada sobre a mesa.

Carlos- A Ester não está regulando bem…
Dulce- Ninguém…
Carlos- Ela tentou me matar.

Ester e Jorge se levantam e saem.

Carlos- Quis me sufocar
Disse que era culpa da Rita,
Pobrezinha estava tão aflita…
Débora- Estou ouvindo vozes,
Vozes que falam da Rita….
Ricardo- É o diabo….
Ah, eu ainda acabo
Com esse risinho desgraçado.
Débora- É coisa da tua cabeça
Carlos- Ela estava possuída
De uma força e uma vontade homicida
Dulce- Ai minha nossa senhora de Aparecida!
Débora- Coisa da tua cabeça….
Carlos- Ela pegou aqui no meu pescoço
Tentei escapar, fiz um esforço
Danado, mas ela era muito forte
Dizia que queria ver minha morte.

Luz no botequim. Ester, Jorge e Quincas.

Ester- Ele me traiu seu Joaquim..
Quincas- Ele me disse que não.
Ester- Então o senhor acha que ele iria fazer a confissão
Assim do nada?
Ele tinha um caso com a Rita.
Quincas- Essa história está muito esquisita
Eu mesmo não acredito.
Ester- Por que o senhor também é o homem e maldito,
Também queria a Rita
Na tua cama!
Quincas- Queria sim, e quem não iria querer?
Qual é o drama?
Eu queria mesmo dona Ester.
Ester- É um safado…um imoral
O que vocês homens têm
É somente desejo sexual
E nada mais…não querem o bem
De nenhuma mulher
Só pensam no prazer carnal…
Quincas- Que isso, não é assim não dona Ester….

Ela novamente está em transe.

Ester- E por mim, você sente tesão?
Você também me quer na sua cama?
Quincas- O que é isso dona Ester?
A senhora sempre foi tão calma
Não faça esse escândalo, hem….
Ester- Como é, quer ou não quer?
Eu também sou fêmea, sou mulher
Me diz que você não sente atração…
Quincas- A senhora está perdendo a razão!

Jorge que até então só observava, agora reage.

Jorge- Ester, o que é que está acontecendo?
Ester- Estou mostrando pra Rita
Que eu também sou mulher,
Posso não ser tão bonita
Mas também sou uma mulher!
Jorge- Você não sabe o que está fazendo!
Será que não está percebendo?
Olha o que está fazendo,
Vamos lá pra fora, tomar um ar
Ester- Não quero ar!
Jorge- Vem!

Os dois saem. Quincas fica só a alisar o balcão. Luz na sala.

Dulce- Ouvi dizer que você tinha um caso com a Rita.
Carlos- E você por acaso acredita?
Dulce- Acredito!
Ricardo- Pois eu não acredito.

Saulo caminha até a escrivaninha e pega os comprimidos de dormir, que Ricardo usava para tentar o suicídio.

Saulo- Eu queria tanto a amar de novo.
Dá um nervoso
De ficar tanto tempo sozinho…

Ele dá um dos comprimidos a Beto, que engole, Saulo engole um também.

Beto- Quero ver a Rita, lhe fazer um carinho,
Tocar seus cabelos
Beijar seus pés, seus joelhos
E ler muita poesia, meus versos novos e velhos…

Os dois tomam os comprimidos até que o frasco está vazio. Saulo tira algumas cartas do bolso. Beto pega uma caneta e começa a escrever um poema em uma folha de papel que também tira do bolso.

Saulo- Essa foi a primeira carta…
Beto- (escrevendo) Nessa minha vida ingrata…
Saulo- Eu era completamente louco…
Apaixonado por ela….

Beto sempre escrevendo em quanto fala. Ricardo senta-se à escrivaninha. Vê o revolver sobre ela. Carlos se senta sobre a mala. Dulce está atenta parece ouvir algo. Débora presta atenção em Dulce.

Beto- Vida morta, cheia de sufoco,
Mas também tão singela!
Não vou mais fazer poesia…

Beto rasga o papel. Beto e Saulo assumem mais uma vez o transe.

Carlos- É uma história sem pé e nem cabeça
Ela disse que quer que eu desapareça,
Eu não fiz nada,
Ela falava em traição
Dizendo que a Rita era uma vadia
Que era a culpada
Do fim da nossa relação.

Ouvem-se batidas na porta. Todos se entreolham. Débora abre a porta imaginaria e Ester então entra. Carlos pega a mala e corre para se esconder atrás de Beto e Saulo, nesse momento ambos já estão desacordados. Ester está furiosa.

Ester- Carlos é um traidor!
Todos os homens são traidores,
Passam por cima das mulheres
Furiosos, feito tratores,
Só querem os prazeres…
Débora- Isso é verdade.
Dulce- Homem é cheio de maldade.
Débora- Homem é tudo igual
Só muda o nome e a caixa postal…
Ester- Carlos me traiu!
Débora- Cachorro, onde já se viu…
Carlos- Não trai ninguém, ouviu
Bem. Não sou nenhum traidor.
Ester- Como pode, te dei tanto amor,
Te dediquei anos da minha vida
E você me dá um golpe no peito
Uma punhalada dessas…que virou uma ferida
Que aos poucos está me matando…
Carlos- Eu não fiz nada….
Ester- Ainda mente com essa cara lavada,
Eu não imaginei eu vi, entendeu?
Vi com esses olhos, não me contaram!
Carlos- Não acredito, você está mentindo.
Ricardo- Não acredito, Ester, você está mentido!
Ester- Você Ricardo, sempre foi um corno
Fomos todos personagens de um filme pornô,
Onde a Rita era protagonista,
Uma sem vergonha, uma vigarista…
Eu achava que era tudo sonho, mas
Fazia muito tempo que eu não dormia mais
E não podia estar sonhando acordada,
Então só podia ser tudo verdade,
Carlos me traia com a cunhada,
Minha irmã, mulher do Ricardo.
Ricardo- Abusado, traidor!
Carlos- Não, é maldade
Da Éter, não acredite nela, Ricardo!
Ricardo- Não sei…
Carlos- Você não pode acreditar nela
Não se deixe enganar, eu sei,
Ela odiava a Rita.
Ricardo- Odiava? Como assim, odiava a Rita?
Carlos- Sim, odiava! Odiava ela!

Jorge entra. Está em transe.

Jorge- Você Ricardo é o grande culpado,
Por sua causa minha irmã morreu,
Foi de desgosto…seu abusado,
Você não deixava a coitada em paz,
Sempre querendo mais e mais,
Ela me contou tudo o que aconteceu
Contou que você era insaciável…um tarado.
Ester- Mas a Rita não ficava muito atrás….
Jorge- Fique quieta Ester!
Carlos- Não grite com minha mulher.
Jorge- Você Carlos, é outro tarado
Vivia perseguindo a Rita pra tudo o que é lado.

Luz no botequim. Quincas está calado e pensativo.

Quincas- Essa história não vai acabar bem,
Tudo começou a tanto tempo atrás,
Que quase não me lembro mais…

Ele busca uma garrafa, um copo e bebe.

Quincas- A gente mente a vida inteira,
Mas não adianta, é besteira
Chega uma hora em que a gente tem
Que olhar na cara da verdade…

De repente Rita entra no bar, como uma visão que Quincas tem.

Quincas- Ta vendo dona Rita, a maldade
Que a senhora acabou semeando…
Rita- eu não sou culpada
Não tenho nada a ver com isso, eu
Sou a única inocente,
Não sei o que toda essa gente sente…
Quincas- Não?
Rita- Não sei o que você sente.
Quincas- Não?
Rita- Não sei o que Saulo sente
O que Beto sente
O que Ester sente….
Quincas- Não?
Rita- Não sei o que o meu irmão sente
O que meu maridos sente…
Quincas- Estão todos possuídos pela loucura
Todos…inclusive eu,
Desde que a senhora morreu
Uma desgraça muito grande se abateu
Sobre todos nós…entendeu?

De repente black-out . quando as luzes se acendem o bar está vazio. Saulo e Beto estão sobre a sepultura, com os corpos imóveis, ambos estão mortos.
Ricardo- Ester, você a odiava, por quê?
Ela sempre amou tanto você…
Ester- Ela só amava a si mesma, uma egoísta…
Ricardo- Não fala assim da Rita
É você quem é uma egoísta
Carlos- Não fale assim com ela…
Vou contar a verdade,
Eu realmente tive um caso com ela….
Ester- Desgraçado….
Ricardo- Não acredito, você está mentindo….
Jorge- Eu também não acredito, mentiroso
Como você pode ser tão baixo, vil, venenoso,
Anda vai, seu cínico, me diz…
Ester- Desgraçado…
Carlos- É verdade, o nosso caso foi bem
Embaixo do nariz
De todo mundo…
Ouviram bem….
Ester- Seu nojento…seu imundo….
Maldito traidor…
Ainda me fazia juras de amor….
Jorge- Eu não acredito em nada
É tudo uma mentira deslavada.
Ricardo- Como pode ser tão canalha?
Você acha mesmo que alguém acredita?
Ester- Eu acredito..eu vi…é verdade
Débora- Que Deus nos valha
Neste momento
Amém…
Dulce- Amém…
Ricardo- Canalha…
Ester- Traidor, como fez essa maldade….
Dulce- Ouço uma voz estranha…uma profundidade….
Débora- Quieta! Não é nada!
Jorge- Você está inventando toda essa história
Pra manchar a memória
Da minha irmã, por que ela caiu na tua
Cantada barata…cantada de porta de bar….
Carlos- Você não sabe de nada
Não sabe da missa um terço ….nada!
Sempre perdido nu mundo da lua….
Ester- Como você teve coragem….
Carlos- Foi culpa sua…
Ester- Minha culpa
Agora é essa a desculpa….
Carlos- Todinha sua,
Vivia falando isso e aquilo da Rita
Que era a mais bonita
Mas cheirosa, mas amada
Que perto dela você não era nada….
Ester- Eu nunca disse isso, você está mentindo.
Carlos- Você falava isso o dia inteiro…
Ester- Mentiroso…você não presta.
Carlos- O meu amor era verdadeiro
Mas você o destruiu
Com o seu maldito ressentimento …
Ester- Você está tentando justificar
Que me traiu
Por que eu mate matei um sentimento
Que sei que nunca existiu…
Carlos- Culpa sua sim…você a detesta
E por isso eu quis amar
A Rita, para poder provar
Que ela não era a peste que você dizia…
Ricardo- Você a chamava de peste?
Ester- Não só a chamava, como chama..peste…peste
Ricardo- Repete para eu ouvir…se tiver coragem …repete
Ester- Ela era uma peste…uma traidora
Uma maldita sedutora
De marido alheio,
É minha irmã, mas eu a odeio…
Ricardo- Você tinha inveja dela…eu sei….
Ester- Tive sim, não minto
Não escondo o que sinto,
Mas agora tenho só desprezo,
Um ódio que está preso
Aqui na garganta….
Ricardo- A gente só colhe o que planta,
Tudo é por causa da inveja sua,
Por isso não consegue mais
Ter tranqüilidade ou viver em paz,
Mesmo eu que sempre a amei
Não tenho tido paz,
Imagine então quem tinha ódio
Um sentimento do demônio….
Ester- Ela teve um caso com meu marido…
Ricardo- Eu não acredito.
Ester- Você já ouviu a confissão,
Já sabe que foi traído,
Tem que tomar uma posição…
Jorge- Ricardo também a traia…eu sei
Ricardo- Mais mentiras…onde vamos parar…
Jorge- Tinha outras mulheres
Ricardo- Eram somente prazeres
A Rita era a titular
Ela era quem eu amava…
Dulce- Você também a enganava?
Débora- Outro traidor!
Carlos- Sim, ela me falou sobre sua traição
Dizia que se entregou a mim
Por que estava prevendo o fim
De sua relação
Com o marido
Que por varias vezes a havia traído….
Ricardo- Ela dizia?
Carlos- Falava que a tua poesia
Não era mais para ela
E sim para uma magricela
Com cabelos cheios de tinta amarela…
Ricardo- Isso não era verdade,
Minha poesia sempre foi para ela,
Tanto é que depois que morreu
Nunca mais consegui escrever um verso.
Carlos- Ela dizia que você era perverso
Dulce- Por isso você se trancou Ricardo?
Por remorso pela traição?
Débora- Por isso não quis mais ver o sol nascer
Tinha vergonha de sua traição?
Ricardo- Sempre tive vergonha de minha obsessão
Por mulheres….mas a culpa não era minha,
Tinha um desejo que vinha
E me dominava por inteiro
Mesmo sendo escritor não dá pra transar
Com a maquina ou com o tinteiro
Eu precisa de uma mulher pra me saciar…
Carlos- Uma?
Ester- Uma só?
Débora- Umazinha?
Jorge- Uma?
Ricardo- Não. Mais do que uma
Mas com a Rita era diferente…
Jorge- Mentira tua.
Ricardo- O desejo me perseguia
Tão intenso como uma dor de dente,
Eu corria, tentava escrever poesia.
Quando ela morreu, nunca mais
Eu consegui ter paz,
O diabo começou a aparecer…
Ester- Não era o diabo, sim tua consciência pesada
Era sua mente tentando te enlouquecer…
Ricardo- E conseguiu…
Carlos- Enlouqueceu também a Ester.
Ester- Não estou louca…estou traída.
Estou machucada….ressentida.
Ricardo- Foi por isso que me tranquei
Eu não queria ver ninguém
Depois dela nunca mais desejei,
Nunca mais tive outra mulher…
Carlos- É terrível quando isso acontece com agente
Ficar assim impotente…
Ricardo- Eu não fiquei impotente!
Carlos- Foi isso que eu consegui entender….
Ricardo– Não sei o que foi que aconteceu
O desejo acabou..se foi… morreu…
Antes era intenso
As vezes quando eu penso
Nisso me dá uma frustração
Meu membro vivia duro como uma rocha,
E agora sou completamente brocha….
Carlos- Por isso se esqueceu da vida?
Ester- Carlos, tomará que isso te aconteça também …
Carlos- Comigo não, não vem que não tem.
Dulce- Meu Deus, quantas tragédias
Parece que perdemos as rédias
Da própria vida….
Débora- Tanta traição
Tanta amargura no coração,
Não dá pra viver assim,
Essa família está se ruindo
Se autodestruindo…
É o fim….
Dulce- Ainda ouço um som….meio assim…assim…
Débora- Coisa da tua cabeça …isso sim…
Ester- (para Carlos) Pra onde você vai?
Carlos- Não sei…pra qualquer lugar…
Ricardo- Nunca fui a cemitério
Por que tinha medo…é sério,
Tinha medo da Rita de levantar
Daquele caixão e querer me matar
Débora- Coisa da tua cabeça… isso sim…
Ricardo- Mesmo assim não consegui fugir dela
Por isso nunca abri essa janela…
Ester- Vocês são todos traidores
Traem e depois ficam assim
Com remorso…com medo de alma penada…
Carlos- Nunca tive medo dela,
Por que pra ela eu fui um conforto
Fiz carinho enquanto o marido a traia,
A amava um pouco mais a cada dia…
Ester- E em mim você não pensou..
Carlos- Eu sempre te amei, mas era diferente
Ester - Vai me dizer que a Rita era mais quente
Isso já estou cansada de ouvir…
Carlos- Não é nesse sentido Ester,
A Rita não era como uma mulher,
Era mais como uma menina…
Ester- Céus, como eu fui cretina…
Carlos- Pára para me ouvir,
Ela era uma criança indefesa.
Pra que servia toda aquela beleza,
Se no fundo nada lhe valia,
Só lhe trazia
Mais desgraça a cada dia?
Ela não era desse mundo, entendeu?
Não era nem atração o que eu sentia
Era um extinto meio que paterno,
Queria a proteger de toda aflição
Protege-la da vida…da traição.
Mas não adiantou, ela morreu…
Foi duro vê-la no caixão
Mas ela morreu sorrindo, perdoando
Morreu nos amando…
Ricardo- Ela morreu me odiando…
Carlos- Não Ricardo, ela entendia
Ela sabia que você era inocente
Que era um sujeito decente….
Ricardo- Não, ela não entendia,
Devia me achar um tarado,
Ela entendeu tudo errado…
Dulce- Mas acontece que ela já morreu,
Vai fazer anos que isso aconteceu,
Não adianta desenterrar o passado…
Ester- A Rita não ficou no passado,
Ela ainda está entre nós,
Causando toda essa discórdia
Destruindo nossos lares sem misericórdia…
Dulce- O que a gente tem que fazer é ouvir a voz
Da razão e tentar esquecer o que passou
E conviver com o que restou…
Débora- É não adianta toda essa briga,
Tanta confusão, toda essa intriga,
No fundo, no fundo é tudo loucura,
Quanto tempo isso ainda dura?
Ester- Não consigo esquecer…
Ricardo- Nem eu…
Carlos- É difícil compreender
Mas não dá pra apagar tudo
Deletar da mente
Todo o passado assim, de repente…
Ricardo- Eu a mataria
Se ela ainda estivesse viva….
Carlos- Como? De que jeito?
Ricardo- Com o revolver. Um trinta e oito…
Carlos- Não tem mais medo?
Dulce- Aquela arma perversa, nociva…
Débora- Eu duvido…não acredito…
Ester- Isso não resolveria
Nada, além do mais ela morreu,
É por isso que tudo isso aconteceu
Dulce- Depois disso é que todo mundo enlouqueceu…
Ester- Foi depois que a gente se perdeu…
Dulce- Por causa dela que o Beto morreu…
Débora- E por causa dela o Saulo também morreu….
Ricardo- Ainda tenho medo,
Ainda é mais forte do que eu.
Onde está a arma?

Ele a encontra sobre a mesa.

Ricardo- Ela é gelada…Um gelo sepulcral…
Tem cheiro de ódio, mas é só metal…
Ferro misturado com chumbo…Mortal,
Tenho medo desse revolver,
Sempre achei que podia resolver
Todos os meus problemas, com essa arma,
Mas nem a consigo olhar direito.

Ele está em transe e doce.

Ricardo- Eu poderia puxar o gatilho agora
E estourar minha cabeça,
Ficar vendo o cérebro saltar para fora,
Ver me vazar essa loucura, essa doença …
Ou então poderia apontar para o peito…

Abre os botões da camisa com um puxão.

Ricardo- E explodir o coração
Talvez essa fosse uma boa saída,
Que sabe me redimisse da traição
E concertasse a vida
De todos nós…
Dulce- Ouço uma voz
Meio velada,
Parece que tem alguém subindo a escada….
Ricardo- E até a da Rita, que já está morta…
Dulce- Ouço passos caminhando para a porta…

Batem na porta.

Ricardo- Quem
É que vem?
Dulce- Não sei. Não estou esperando por ninguém.
Débora- Nem eu.
Ricardo- Deve ser o demônio que me persegue,
Por onde quer que eu vá ele me segue…
Dulce- Coisa da tua cabeça…
Ricardo- Só pode ser a Rita.
Dulce- Coisa da tua cabeça…

Batem na porta de novo, com insistência.

Dulce- É mão de homem, ouça a batida,
A madeira até mesmo grita…
Débora- Quem é que vai abrir?

Instala-se um clima pesado na sala. Todos se olham desconfiados, no auge da paranóia. Batem ainda com mais insistência.

Dulce- Quem pode ser a essa hora?
Débora- Ainda mais com o frio que está lá fora.

Débora e Dulce se abraçam apavoradas. Batem insistentemente.

Dulce- Quem vai abrir?
Débora- É aquele barulho macabro
Que eu estava ouvindo…
Ricardo- Pode deixar que eu mesmo abro.

Ricardo abre a porta imaginaria, entra Quincas assustado, com o mesmo comportamento paranóico de todos que estão na sala.

Quincas- Ela apareceu pra mim… lá no bar…
Deu um medo, fiquei até sem ar…
Ricardo- Ela quem, seu Joaquim?
Quincas- Sua mulher…
Ester- Quem, seu Joaquim?
Quincas- Sua irmã, dona Ester…
Carlos- Como assim?
Quincas- Era bem de tardezinha, o sol ia se por…
Ester- Isso é absurdo…
Quincas- Juro por Nosso Senhor…
Dulce- Não jure, jurar é pecado…
Quincas- Eu estava lá…e ela de repente
Surgiu do nada, bem na minha frente…
Ester- O senhor não teve medo?
Quincas- Medo não dona Ester…
Dulce- Coisa da tua cabeça,
Essa cabeça perturbada de pecador…
Quincas- Ela me contou um segredo.
Débora- Bem cabeludo?
Dulce- Bem absurdo?
Ester- Vai, anda, conta tudo.
Carlos- Deixem o homem em paz…
Ester- Ora Carlos, está com medo?
Ricardo- História sem pé e nem cabeça..
Ester- Ricardo, também está com medo?
Ricardo- Não. Pra mim tanto faz
Se ela contou ou não esse tal segredo…
Dulce- Qual é o segredo?
Quincas- Não posso contar.
Dulce- Como assim?
Ester- Que historia é essa seu Joaquim?
Quincas- Ela me proibiu de falar
É um segredo de túmulo.
Ester- Isso só pode ser brincadeira…
Dulce- Isso é o cúmulo!
Quincas- Nunca vou poder revelar,
Nunca, nem na hora derradeira,
Não se pode contar segredo alheio.
Ester- Então por que veio?
Dulce- Só pra nos atormentar?
Débora- Só pra provocar nossa curiosidade?
Quincas- Não!
Dulce- Como não?
Débora- Como assim?
Ester- Explique-se melhor, seu Joaquim.
Quincas- Era no meu bar que ela comprava pão…
Ester- Eu sei…
Dulce- Eu também sei…
Débora- E o que isso tem a ver com o caso, afinal?
Ricardo- O último pão
Foi comprado para o funeral
No velório todo mundo se fartou,
E foi o senhor quem lucrou…
Quincas- Vim até aqui em consideração
A família, pra dizer do segredo
Que ela me contou,
Mas já me arrependo…
Disse pra ela da loucura
Que reina nesse lar…
Ester- De que loucura o senhor está falando?
Dulce- Loucura? Que loucura?
Quincas- Não precisam disfarçar, não.
A cidade toda sabe o que há nesse casarão.
Faz meses que ninguém sai
Os últimos saíram no caixão…
Beto e Saulo, ambos mortos, direto
Para o cemitério,
Desde então um mistério
Envolve todo esse casarão
Ninguém entra e ninguém sai,
Parece ate mesmo maldição…
Jorge- É uma maldição,
Todos vamos morrer aqui, trancados,
Estamos vivos, mas sepultados…
Dulce- É bucólico, mas é verdade…
Ester- Isso é uma paranóia…é absurdo!
Dulce- Coisa da nossa cabeça…insanidade!
Jorge- Pois eu já sinto os vermes
Querendo devorar nossas epidermes….
Carlos- Vermes?
Quincas- Tem mesmo certeza de que são vermes?
Jorge- Certeza sim…
Dulce- Coisa da tua cabeça, não vê que é um absurdo?
Débora- Deve se cupim,
Não vermes….
Quincas- A Rita me contou…
Ricardo- Aquele segredo?
Jorge- Ora, não era secreto?
Dulce- Segredos, detesto!
Ester- Tenho arrepios só de pensar.
Dulce- Com segredo de morto não é bom brincar!
Quincas- Ela me disse outra coisa também.
Carlos- Sobre quem?
Ricardo- Sobre mim?
Ester- Vamos, desembuche, seu Joaquim.
Débora- Então, o que é que tem?
Quincas- Ela disse que todo mundo aqui é refém.
Jorge- De quem?
Quincas- Dela, da dona Rita…
Dulce- Coisa da tua cabeça…
Ester- Bobagem…
Quincas- Disse que ninguém
Aqui tem
Um pingo de coragem
Pra sair lá fora!
Ricardo- E você por acaso acredita?
Afinal é aqui que a gente mora
Pra que sair se temos aqui todo o conforto…
Quincas- Disse que todo mundo está um pouco morto,
Que vão morrer aqui, trancados,
Ela me contou o motivo…
Ricardo- Bobagem, todo mundo aqui está bem vivo…
Quincas- Você já tentou se matar…
Ricardo- E ainda quero
Só me falta coragem
Dulce- Coisa da tua cabeça….Bobagem…
Débora- Ai, assim eu me desespero…
Quincas- Sei por que vocês não conseguem
Sair da casa nem pra tomar um ar…
Ester- Sabe o que?
Quincas- Ela me contou o porque.
Todos vocês têm um segredo escondido.
Dulce- Coisa da tua cabeça…bobagem…
Quincas- É vergonha do passado
Ela me contou…contou tudo.
Jorge- Tudo?
Ester- Loucura da cabeça desse homem!
Dulce- Vamos, diga qual é o segredo.
Quincas- Não posso contar,
Ela disse que eu tinha que me trancar
Com vocês todos nesse casarão.
Ricardo- Mas isso é um absurdo!
Quincas- Se eu não obedecer irá me assombrar noite e dia!
Dulce- Que medo, assombração…

Ricardo aponta a arma para Quincas.

Ricardo- Vamos, diga de uma vez seu Joaquim
O que a Rita falou sobre mim…
Olha que eu atiro…não estou de brincadeira…
Quincas- Duvido…Você tem medo,
Sei que te dá ate mesmo tremedeira
Só de pegar nesse revolver,
E se um dia você resolver
Usar, vai ser contra você mesmo, eu sei,
Foi a Rita quem me contou. Eu sei…
Ricardo- Não acredito em fantasma…
Dulce- Ricardo, mantenha a calma,
Guarde essa arma…

Ricardo pára de repente e olha para o revolver.
Percebe-se nitidamente que tem medo da arma.
Coloca-a sobre a escrivaninha.

Quincas- Ela odeia todos nós…Todo mundo!
Jorge- A mim ela não odeia. Qual seria o pretexto?
Que motivo teria para me odiar?
Quincas- O senhor sabe qual
Jorge- Me diga, se for capaz, qual?
Quincas- A possuiu a força…Um incesto!
Dulce- Pecado cruel…pecado mortal.
Ricardo- Desgraçado, como teve coragem!
Jorge- É mentira. Isso não tem cabimento…
Débora- Imoral, monstro, indecente…
Quincas- Ela era somente
Uma adolescente!
Jorge- Não fiz isso, é mentira!

Jorge corre para a escrivaninha e pega o revolver.

Ester- Não Jorge, não!
Quincas- Vai seu porco, atira!
Jorge- Desgraçado!
Essa história estava enterrada
No nosso passado!
Quincas- Ela nunca esqueceu!
Jorge- Ela já morreu!
Ester- Eu não acredito!
Dulce- Não digo que todo homem é maldito!
Jorge- Ela já me perdou!
Quincas- Não, ela não o perdou!

Jorge cai sentado no sofá.

Jorge- Eu estou perdido
Tenho nojo das minhas mãos, sim
Nojo do meu corpo, minhas ações,
Nojo das minhas próprias emoções,
É o meu fim!

Ele encosta o revolver no ouvido e puxa o gatilho. Ouve-se o som de um tiro. Black-out. quando a luz retorna o corpo de Jorge está junto com os de Saulo e Beto, sobre a sepultura de Rita. Os demais personagens se encontram nas mesmas posições.

Dulce- Está sentindo o cheiro?
Débora- Estou, é a decomposição….
Ester- Ficará assim o tempo inteiro,
Mas antes de se decompor totalmente
Já não teremos mais nossas mentes…
Ricardo- Não agüento mais essa situação.

Ricardo se senta a escrivaninha, por detrás da maquina.

Dulce- Onde colocaram o corpo do morto?
Quincas- No porão.
Débora- Não tinha outro lugar?
Quincas- Lá Jorge terá todo o conforto
Pra se decompor em paz…
Ester- E agora, o que a gente faz?
Carlos- Espera a morte chegar.
Dulce- Eu tenho medo da morte.
Débora- Que isso Dulce…seja forte!
É coisa da tua cabeça, essa história…
Quincas- A Rita juntou aqui toda a escória,
Pra morrermos juntos.
Nada adianta, logos seremos todos defuntos…
Carlos- Ninguém vai fazer nada?
Quincas- Não há nada para ser feito
Estamos todos com a mente perturbada,
Cada segredo revelado
Um morto será feito!

Ricardo se levanta com a arma em punho.

Ricardo- Nenhum segredo mais será revelado!
Quincas- Foi ela quem mandou,
Ela vai me perseguir noite e dia,
Tenho o que fazer o que me mandou:
Revelar todos os segredos!
Ester- Isso é covardia!
Dulce- É um absurdo!
Carlos- Um abuso!
Débora- Não quero mais ouvir nada…me recuso!
Quincas- Ricardo, ainda não venceu seu medo!
Ricardo- Não tenho mais medo!
Quincas- Mentira!
Ricardo- Estou dominado por um sofrimento
Sem tamanho…Uma ira!
Quincas- Tudo fingimento!
Tudo mentira!
Débora- Cuidado com isso Ricardo!
Carlos- Atira logo nesse desgraçado!
Ester- Está com medo Carlos, de algum segredo?
Carlos- Não tenho medo de nada!
Dulce- Não atira!
Carlos- Atira, vai, atira!
Quincas- Ele tem medo!
Carlos- Atire antes que ele diga mais algum segredo!
Ester- Sabia que era esse o seu medo!
Ricardo- Não tenho medo!
Carlos- Anda logo, Ricardo, Atira
Quincas- Covarde!
Carlos- Atira…seu covarde!

Lentamente ele encosta o revolver no próprio ouvido e puxa o gatilho. Cai.

Quincas- Ele não pode morrer!
Dulce- Já morreu!
Débora- Pobre do meu irmão!
Quincas- Não me deixou contar o segredo,
Todos nós vamos morrer…
Carlos- Culpa sua isso que aconteceu…
Quincas- Não tem mais salvação
Vamos morrer todos sufocados
Aqui. A podridão
Da nossa alma vai sufocar nossa respiração,
Morrermos asfixiados
Aqui nesse casarão,
Sem mãos conseguir ver o sol nascer,
É só uma questão
De tempo até todo mundo morrer.

Ester se abraça a Carlos. Dulce e Débora rezam em voz baixa e abraçadas. Quincas se ajoelha junto ao corpo e lhe tira a arma da mão.

Quincas- Vamos todos morrer,
Essa é a maldição da Rita,
Tão bonita,
Mas tão maldita!

CAI O PANO. FIM DO SEGUNDO E ÚLTIMO ATO

Odair J. Alves
Junho de 2002

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