quarta-feira, 14 de maio de 2008

Lembranças do homem sem nome

Ele não era chamado pelo nome, não havia como, não tinha nome, nem número de identidade, nem coisa alguma que não fosse a si mesmo. Os bacharéis em direito bem poderiam dizer que ele não era uma pessoa, nem física e nem jurídica, mas não diziam, simplesmente não havia o que dizer. Ele também não dizia nada, não havia o que dizer, não havia perguntas, então o silêncio era a resposta mais sábia, talvez a única, mas não havia como saber, ninguém queria saber, ninguém precisava saber, a ignorância era uma benção, pensavam, ele também pensava.
O sujeito tinha, no entanto, lembranças dos momentos em que não foi lembrado. Do momento em que se sentou, no ônibus lotado, ao lado da moça de cabelos presos, óculos, ar de intelectual, perfume de jasmim, ela tinha nome, um nome que ele já não se lembra. Um nome que já não lembram. Do que servem os nomes se as pessoas simplesmente os esquecem uma hora ou outra. Ele não tinha nome, não lhe fazia falta. A moça de óculos nunca tomou conhecimento de sua presença, nunca perguntou seu nome, e se perguntasse não haveria resposta, o silêncio era uma virtude, um companheiro fiel, imaginava.
Lembrava dos sacolejos do ônibus enquanto respirava o cheiro de jasmim da moça, jasmim é um nome bonito para uma flor, mas também para uma mulher, talvez a moça se chamasse Jasmim, talvez não, um nome é somente um nome, substantivo próprio, havia aprendido na escola, havia respondido corretamente na prova de gramática, pra que? Do que servia essa informação, se ele não tinha nome. Não queria ter. Pra que? Todos têm nomes, diziam, ele se cansou de ouvir. Foi então que resolveu ir embora, pegou o ônibus, se sentou ao lado da moça que tinhas ares intelectualizados
Pela janela via a paisagem, as deformações do mundo ao redor, do mundo que vivia independente dele e da moça ao lado, mas seu perfume era algo cruel, algo que o chamava para a realidade, ou irrealidade de sua anônima situação. Vivia em um mundo onde até mesmo um cesto de lixo estava vomitando substantivos e ele não tinha um único pra chamar de seu, às vezes pensava nisso como uma maldição, noutras vezes era um dom, vivia às margens de um mundo desigual e não era igual aos desiguais, isso não era um paradoxo, pelo menos não dentro dele, não era uma questão sofistica, não era nem ao menos material suficiente para o refrão de um bolero piegas, era um fato, um artefato, não sabia, ninguém sabia, não queriam saber. A moça ao lado não queria saber, pelo menos não precisava saber, tudo estava suspenso, mas a queda era inevitável, tudo culpa daquele cheiro de jasmim que exala dela.
Se não fosse pelo perfume, não haveria tal questionamento, não faria tanta diferença, talvez diferença alguma, mas havia o cheiro da moça de quem não queria saber o nome, mas talvez tivesse um nome bonito, nome de flor, essa possibilidade o incomodava. Não gostava de se sentir assim, dava-lhe gana de sair correndo, mas dentro do ônibus não havia como, se pelos menos estivesse dentro de um trem poderia pensar no caso, conforme fosse. Poderia perguntar a moça que perfume era aquele, talvez ela respondesse em um monossílabo tônico e intelectualizado, algum verbete desconhecido para ele e sua ignorância sem substantivos e predicados, quem dera soubesse pronomes pomposos para se dirigir a tão perfumada figura, cognatos perfeitos, não, desconhecia todos, talvez ela não se resignasse a responder tão estúpida pergunta, e apenas lançasse um olhar de desdém em direção a sua figura quixotesca e anônima, ele não sabia, não queria saber, estava convencido de que isso não tinha a menor importância. Será?
Sua convicção nesse momento era feita de cartas sobre postas em um castelo feito com um baralho já gasto, não sabia se poderia se erguer mais alguns andares. O perfume era um furacão soprando seu castelo de cartas. Ele se manteve firme e não mais deu importância a tal odor. Era sua única lembrança daquela viagem. Ao não ser pelo nome da moça, que descobriu na chega a rodoviária, quando um rapaz de óculos correu em sua direção para abraça-la.
- Rosa , meu amor, quantas saudade!
Sim, a moça de fato tinha nome de flor, ele ficou a vendo partir, ficou sentido seu perfume se repartindo em outros tantos odores da rodoviária e então tudo sumiu e o que restou foi uma lembrança. No momento se perguntou se um dia ainda sentiria seu perfume outra vez, não sabia, não sabiam, ninguém queria saber.

Junqueirópolis, 17, março de 2008.

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