quarta-feira, 14 de maio de 2008

Labirintos de Rita

Há quem me pergunte de onde vem essa fixação por Rita. Uma mulher sem rosto. Mas que coxas ela tem, meu Deus. Pelo menos dentro da minha imaginação ela tem os olhos mais doces do mundo, e o melhor de todos os beijos. Amo Rita desde sempre. Desde antes. Ela foi prefácio de si mesma. De óculos, cabelos loiros ou sem óculos e pele negra. Rita é tão contraditória dentro de mim.

Eu a conheci, a vi pela primeira vez, em um baile de máscaras. E até hoje eu desconheço seu rosto. Tenho ficção por seu nome. A vejo nua, pernas grossas, lábios tenros, sorriso maroto. Tenho sonhado com ela nestas últimas noites. No sonho Rita está sempre correndo. Hora em minha direção, hora para longe de mim. Para onde ela corre? Para que tantos passos?

Uma vez eu a encontrei na biblioteca. O rosto escondido por detrás do livro. Mais uma vez fiquei sem conhecer seu rosto. Mais uma vez vi apenas suas pernas. Longas. Cruzadas sob a mesa. Rita tem sido apenas pernas. Pernas sob a mesa. Pernas a correr para lá e para cá.

Como será, de fato, o sorriso de Rita? Maroto, como em minha imaginação? Escondido por um parelho ortodôntico? Tenho imaginado varias situações. Ela sempre está com o rosto escondido. Como amar uma mulher sem rosto? Será o bastante amar somente suas pernas? Acho que não, mas por Rita vale a pena tentar.

Ela lê, cabeça baixa. Os cabelos longos caem-lhe no rosto. Está imóvel. Somente seus lábios se movem. Vejo suas pernas cruzadas sob a mesa.

Uma vez, pensando em Rita, escrevi um soneto. Mas era um soneto sem rosto. Somente pernas. 14 pernas. Uma perna para cada verso. Um verso para cada vez que deixei de ver seu rosto. Ainda me lembro do soneto.

Rita, linda mulher sem rosto,
Vejo-te cálida, feroz e crua,
Desejo-te plácida e nua.
Rita, não imagina como gosto

De imaginar-te a face,
Por todas estas noites vazias,
E por tantos e tantos dias
Anseio-te ver sem o disfarce

Que em mim te cobre a tez.
Estou cansado de ver-te apenas
A beleza ondulante das pernas

Que majestosa cruzas sob a mesa,
Queria Rita ter a certeza
De teu rosto, ao menos uma vez

Rita mesmo no soneto é uma mulher sem rosto. Apenas pernas, busto, quadril, cabelos caindo sobre as faces. A máscara eterna. O eterno baile de máscaras. Por quê Rita faz isso? O que ela quer? O que eu quero dela? Quero ver seu rosto, nada mais.

Em um dos meus últimos delírios de amor me vejo próximo de Rita. Aproximo-me devagar. Pé ante pé. Sussurro no seu ouvido.

- Me mostre seu rosto, Rita.

- Não posso.

- Por quê fazes isso comigo, Rita?

- Não tenho rosto, apenas pernas.

O cheiro dela é inexplicavelmente brando. Anestesia a aspereza de suas palavras. Ela é apenas pernas. Pernas para fugirem de mim. Ela no transito, agora eu sigo, pára no sinal vermelho. Olha-se no espelho, passa batom, está, está de costas. O sinal abre. Rita some. Mistura-se a outras pessoas. Desce do carro e mistura suas pernas a tantas outras pernas. Rita some na multidão. Somente pernas e nenhum rosto.

Agora ela está escondida por detrás de um livro. Vejo seus ombros e seus seios. Céus, que descoberta. Rita também tem seios! Seios que sobem e descem. Seios e pernas, onde estará o rosto? Noutra ilusão Rita está lendo quando me aproximo.

- Que livro está lendo, Rita?

- A mulher sem rosto.- Ela diz, sem me mostrar o rosto. Mostra-me apenas os seios e as pernas.

Aos poucos vou descobrindo Rita. Assim como quem monta um quebra cabeças. Primeiro as pernas. Depois os seios e os ombros. Rita é como um jogo de montar, me parece. Descubro-lhe os braços, a barriga, espio por debaixo da mesa e tento lhe descobrir detalhes nas coxas. Ela cruza e descruza as pernas. Distraio-me um pouco e Rita já se foi. Levou seu rosto para longe de mim. Mais uma descoberta, a ausência de Rita.

Em um de meus últimos sonhos nós jogamos pôquer. Rita tem as cartas à frente do rosto. Escondido mais uma vez. Quando vai se livrar da máscara de cartas, jogando-as na mesa, eu acordo sem tempo de ver-lhe o rosto. Frustrado me olho no espelho. E estranhamente não vejo meu próprio rosto. Tudo é apenas uma massa disforme. Feito a batata de uma perna magra. Onde está meu rosto? Meus olhos? Minha boca? Meu nariz? Não tenho olhos, mas vejo mesmo assim. Não tenho ouvidos, ou boca,. Ou nariz. Quero gritar de horror, mas onde está a boca? Sinto duas mãos a massagearem meu rosto. Viro-me e lá está Rita, também sem rosto.

Acordo desesperado. Percebo que tudo era um sonho.

Tenho imaginado Rita em varias situações. Outro dia tive a impressão, na praia, de ver a escondida através te um enorme guarda sol. Reconheceria aquelas as pernas em qualquer lugar. Nem mesmo o sol ofuscando tudo é capaz de esconder suas pernas à sanha de meu olhar apaixonado. No instante em que me levanto, disposto a caminhar até Rita, o inevitável acontece. Um daqueles vendedores ambulantes, que insistem em encher as areias das praias de mais confusão e produtos falsificados, cruza minha frente com seu varal cheio de cangas, óculos, toalhas. E quando se vai Rita também já se foi, nem mesmo guarda sol ou pernas, nada restou, apenas a marca arredondada do bumbum na areia. Eis aqui mais uma mágica descoberta; Rita também tem bunda. E pelo fóssil esculpido na areia, deve ser uma bunda das mais belas. Redonda, feito bunda de chacrete, bunda de dançarina de programa de auditório do canal 13.

A fome de Rita aumenta dentro de mim, fome de seu rosto, fome do resto de seu corpo. Rita se foi e sobrou apenas sol a corroer minha pele já avermelhada.

Noutras ocasiões imagino-a feito uma atleta de esgrima, luta com aquela máscara no rosto, golpes precisos, duela comigo, numa luta de vida ou de morte. O cenário é pitoresco e romântico ao mesmo tempo, flores por todos os cantos, os golpes de Rita são precisos, mas ela toma cuidado para não machucar as flores, seu florete corta o ar, venta perto de meus ouvidos, ela não luta, percebo, ela dança uma coreografia mágica, lúcida, espontânea, não há pragmatismo em seus movimentos, sim uma dose de batet d`acion, movimentos perfeitos empunhando a esgrima que silva em minha direção.

Sonho com Rita mais uma vez, correndo novamente. Dessa vez ela é uma atleta. Maratonista, não posso ver seu rosto, ela está muitos metros na minha frente, atravessa a linha de chegada e é abraçada pela assistência e levada, some. Deixa-me sozinho e sem o calor do seu rosto, que deve estar afogueado pelo esforço da corrida.

Noutra noite após um desses miraculosos sonhos me vi de novo com a caneta em punho a fazer um soneto para ela.

Rita de mil rostos desconhecidos
De mil momentos desperdiçados
Por mim na eterna, e adiada, ânsia,
De ver-te o rosto. Mas a distância

Que mantém de mim é tão cruel
Que agora, prostrado sobre o papel,
Tento enxergar a além da máscara
Em que tua face reclusa se ampara,

Mas nada vejo além do imenso
Vazio que me circunda a vista
Ao esconderes-se sem compaixão,

E então eu me tranco na solidão
De tua ausência e, louco, penso
Que é apenas uma sombra, Rita.

Leio o soneto e Rita se materializa na frente dos meus olhos. Agora estamos em uma sala que me parece se tratar de uma sala de psicólogo. Estou deitado no divã e sinto o cheiro de Rita se espalhando por tudo, desde os quadros na parede, as almofadas, nos objetos de decoração. Ouço sua voz.

- O que está havendo com você, Arnold?- Ela pergunta.

Meu nome não é Arnold, mas isso é apenas um detalhe. Rita não tem obrigação de saber meu nome, talvez nem mesmo conheça o meu rosto.

- Estou ficando maluco, doutora Rita.- Respondo a ela.

- Por que acha isso, Alfredo?- Ela pergunta.

Meu nome também não é Alfredo, mas isso é apenas mais um outro detalhe sem a menor importância perante o fato que realmente importa. Tenho vontade de dizer que o motivo é ela, a ausência de seu rosto, mas me calo e ela simplesmente desaparece como que em passe de mágica. É como se simplesmente saísse voando pela janela aberta.

De madrugada em meu apartamento, levanto com a impressão de ouvir passos pela sala, pelos corredores, a princípio fico meio assustado. Pode ser ladrão. Mas como? Eu moro décimo oitavo andar, só se o ladrão entrou pela janela, a menos que seja o super homem ou o homem aranha, eu devo estar enganado. Levando-me ainda meio sonado, acendo as luzes, a claridade machuca os olhos. Na cozinha me deparo com o espetáculo inusitado. A geladeira está aberta. Rita está mexendo, tem a cabeça dentro da geladeira, apenas o resto do corpo aparece na penumbra causada pela pouca luz que vaza da geladeira aberta. O que ela busca de madrugada na minha geladeira? Eu a chamo pelo nome:

- Rita?

Quando ela tira a cabeça de dentro da geladeira vejo uma enorme pedra de gelo envolvendo seu rosto. Um soverte enorme, sorvete de Rita. Caminho em sua direção e ponho-me a lamber o sorvete, na esperança de que ao terminar possa me deparar com o seu rosto.

As situações em que imagino Rita tem se tornado cada vez mais inusitadas, como essa do sorvete. Mas nem tudo são espinhos nessas alucinações. Tem o cheiro dela, que é sempre o mesmo, adocicado e suave.

Nesse último mês sempre que me levanto com a impressão de que Rita está por perto, escrevo um soneto para ela.por exemplo, um soneto para os ombros, um soneto para os seios, um soneto para o busto, sempre quatorze versos, mas não fui capaz ainda de escrever um soneto para seu rosto.

A pilha de sonetos de avoluma, dúzias e mais dúzias, já dariam um livro. Se eu fosse poeta publicaria um livro de sonetos, tenho imaginado os títulos possíveis; A procura do rosto de Rita. Onde está o rosto de Rita? Sonetos ao rosto ausente de Rita. A musa sem rosto. Invisível Rita. Títulos não me faltam, e sonetos também não. Mas não sou poeta, sou apenas funcionário publico. Tenho trabalho a fazer, a papelada se empilha sobre minha mesa, a dias que não faço nada a não ser suspirar por Rita, desejar seu rosto.

Rita entra na recepção, caminha em minha direção, abana um leque na frente do rosto, parece estar com muito calor, de fato os dias tem sido de fato quentes. Começo a suar em bicas à medida que Rita caminha em minha direção. O telefone toca na minha mesa, me volto para atender.

- Alô.

É engano, me volto para ver Rita. Ela não está mais onde estava, não caminha mais em minha direção. Não caminha mais em direção alguma, desapareceu, escafedeu-se. Tomou doril.

Meu chefe está esbravejando alguma coisa. Está furioso. Diz que tenho me tornado relapso, que talvez eu esteja estressado. Sugere-me ir para casa, descansar alguns dias. Digo que não é necessário. Mas ele diz que está decidido e pronto.

Pego meu terno, jogo sobre os ombros. Saio para a rua. Está chovendo. Vejo Rita entrando em um táxi. O táxi arranca. Joga água nas pessoas na calçada. Alguns gritam palavrões em direção ao táxi. Um rapaz mostra o dedo anular. Filho da puta. Grita vibrando o dedo no ar.

Entro no meu carro. Ligo o rádio e saio para a chuva. O rádio toca a introdução de uma música que eu conheço bem.

A Rita levou meu sorriso
no sorriso dela meu assunto
Levou junto com ela o que me é de direito
Arrancou-me do peito e tem mais

A Rita, de Chico Buarque. Merda de FM. Desligo o radio e fico ouvindo o som da chuva batendo na lataria do carro. Acendo um cigarro. A fumaça anestesia minhas sensações. Na rua o trânsito está infernal às quatro horas da tarde, o caos da metrópole é um anestésico pra alma, e a minha está carente de alívios. Fico vendo as pessoas passarem, imagino onde deve estar a Rita a uma horas, onde estará seu rosto em meio a tudo isso. Perguntas. A chuva cai. A lataria retumba. O caos se instala ao redor do carro. O frenesi do engarrafamento entope minhas artérias de uma nostalgia que beira a misantropia. Buzinas, a lentidão, pessoas a pé ultrapassam meu carro. Uma dessas pessoas pode muito bem ser Rita, não posso dizer que sim e que não, não consigo ver rostos, nem pernas, o caos da chuva aumenta cada vez mais. Penso em Rita.

Penso nas palavras de meu chefe, que estresse que nada. Estou muito bem. Não tenho nada do que ele imagina, no mínimo acha que estou enrolando no trabalho, os papeis se amontoam sobre minha mesa, petições, requerimentos, alvarás, documentação inútil, pessoas querem coisas, solicitam, exigem, testam a paciência do funcionário publico, um saco. E ainda meu chefe vem com aquela conversa mole de estresses. Fique uma semana em casa, descanse. Descansar vai ser bom. Procurar Rita, tentar enxergar seu rosto no meio da multidão, descobrir suas pernas, seus seios, seu busto, seus pés, refletir sobre os sonetos, quem sabe escrever mais alguns. Um livro quem sabe. Drummond não era funcionário publico? Então, pois bem. Por que cargas d`água eu não poderia também publicar um livro? Mas não agora, agora preciso descansar, diz meu patrão, estressado, foi isso que ele disse. Que bobagem, chefes não sabem de nada. Ninguém naquela repartição sabe de nada, bando de ignorantes, isso sim.

Dez minutos no trânsito, consigo andar uns trezentos metros e sou forçado a parar novamente. A chuva aumenta. A lataria do meu carro parece reproduzir uma sinfonia de metais. Acendo outro cigarro. Ando fumando muito. Através da chuva enxergo um outdoor enorme. Propaganda de meia calça. Reconheço de imediato aquelas pernas. São as pernas de Rita, não há dúvidas.

O que as pernas de Rita estão fazendo naquele outdoor? A chuva vai ficando cada vez mais forte e a cortina de água se fecha, não é mais possível ver coisa alguma à frente do nariz, não existem mas pedestres nas calçadas, os bueiros começam a vazar, vomitar de ressaca, o limpador do meu pára-brisa trabalha feito um louco, o trânsito vai andando aos poucos. Uma hora e meia depois eu estou em casa.

Sete horas da noite. Desço para a rua. Ainda chove. Uma chuva fraca, nem sombra do caos da tarde. As ruas estão tranqüilas. As luzes opacas vazam de janelas abertas, calor, apesar da água que se precipita. Eu suo. Ninguém se atreve a sair a rua. As novelas do canal 13 anestesiam as pessoas, manipulam, trancam-nas dentro de cubículos gentilmente batizados de lares. Onde estará Rita?

Caminho para o bar. Na esquina já enxergo as luzes acesas. Vejo uma mulher saindo apressada. Capa de chuva com toca cobrindo o rosto. Conheço aquele andar. É Rita. Ela dobra a esquina. Corro em sua direção, mas ela já sumiu no fim da rua. Volto para o bar.

- Quem sabe para onde aquela mulher foi?- Pergunto para o primeiro que encontro no bar.

- Que mulher?

- A mulher que acabou de sair daqui.

- Estou aqui a horas e não vi mulher alguma. Você deve estar enganado.

- Tenho certeza de que vi Rita saindo daqui.

- Não conheço Rita nenhuma.

- Você está mentido.- Grito na cara do sujeito.

Ele se levanta enfurecido.

- Está me chamando de mentiroso, seu maluco.

- Mentiroso. Por que está me escondendo o rosto de Rita?

O homem enfurecido me dá um soco no nariz, caio no chão meio tonto, ele me dá alguns chutes nas costelas, sinto uma dor imensa, o homem continua a me chutar, me xinga de maluco e muitos outros palavrões que não consigo entender. De repente a dor pára. Não sinto nada além de uma modorra apática, tudo a meu redor roda. Sinto o gosto de sangue. Tudo fica escuro. Desmaio.

Quando acordo a chuva está mais forte, não há ninguém por perto, o bar está fechado, a rua está deserta. Alguém me chacoalha pelos ombros.

- Ei, moço, acorde!

Conheço essa voz. É a voz de Rita. Não consigo vê-la, meus olhos estão inchados pelos socos do homem, tudo é uma nuvem azul opaca de luz e nada mais.

Não sou Rita. A moça diz.

- Claro que é você Rita. Conheço sua voz.

- Você está enganado, moço.

- Nunca me enganaria com essa voz.

- Está delirando, deve ser a febre, vou te levar para um hospital.

- Não precisa Rita.

- Já disse que não sou Rita. Você está ardendo em febre.

Rita me levanta e me leva para seu carro. Não sabia que Rita tinha carro. Não sei muita coisa sobre ela, mas haverá oportunidades para aprender, descobrir, compartilhar e construir. Sento-me no banco do carona e sinto a cabeça pesada. As luzes dos postes piscam no escuro dos meus olhos embaçados. Desmaio mais uma vez.

Acordo em um leito de hospital. Os olhos já estão desinchados. Uma enfermeira está ao meu lado mexendo na mangueira do soro.

- Onde está Rita?- Pergunto a ela.

- Não há Rita nenhuma por aqui. Descanse, ainda está com muita febre.

Ouço os aparelhos hospitalares, sons monótonos e apáticos, uma ilusão de que a morte está sendo adiada ainda que por apenas alguns minutos. A enfermeira vai e vem, anda para lá e para cá dentro do quarto. Por momentos imagino que seja Rita, e que o rosto fino e os lábios cobertos de um batom esquálido da enfermeira sejam os de Rita, mas as pernas não são as mesmas, os seios não sobem e descem, em seu respirar compassado, frenéticos como os de Rita, que são austeros nos mais sutis dos movimentos. Não, Rita não está aqui, deve estar lá fora.

Olho pela janela, o sol está alto, não chove mais. Sinto-me melhor, apesar de meio tonto. Digo isso a enfermeira, ela diz que deve ser por causa do soro e pelo fato de eu ter ficado deitado durante muito tempo. Uma dor nas costas, ela diz que minhas costelas não foram fraturadas apesar das pancadas. Fico ainda no hospital, durmo e acordo em um ciclo confuso de sonhos picotados, feito uma tela psicodélica, fragmentos de Rita em todos eles, busto, seios, pernas, pés, coxas, joanetes, mas nunca o rosto. O barulhinho persistente do ponteiro dos segundos parece aumentar a apatia no quarto, aumentar a ausência de Rita e de seu rosto.

Quando saio do hospital ainda sinto as costelas doendo, o nariz está quebrado e dói muito, a respiração está difícil, está frio na rua. Caminho devagar vejo as pessoas e nenhuma delas é Rita. Vou até o outdoor de alguns dias atrás, na esperança de rever suas pernas, mas já trocaram a foto, há agora propaganda de cuecas. O melhor é ir para casa e descansar um pouco.

Em casa; nostalgia, vontade de fazer um soneto, pego uma folha de papel e procuro a inspiração, que parece ter fugido junto com o rosto de Rita.

Rita, tenho amargado uma estranha
Saudade da presença de teu rosto
E essa saudade é enorme, tamanha,
Que já sinto a morte. Um desgosto

Em cada gesto, em cada gole, cada trago,
Morre em mim a vontade de ser
E já me esqueço, me abandono, me largo
A mercê de um pálido entardecer

Onde o sol se põe já sem vontade
De retornar no brilho e dar a aurora,
A luz suficiente para iluminar-te

A face. Tenho, Rita, ainda agora,
Uma incerteza, vindo te toda parte
A aumentar a já enorme saudade…

Sim, sinto saudade do rosto de Rita, sem nunca o ter visto. A saudade me atormenta nessa noite, mas do que em qualquer outro. Sinto-me ainda mais nostálgico. As costelas doem. Releio os sonetos, falam sobre todas as partes dela, desde os dedos do pé, até os fios dos cabelos. Ausência de seu rosto. Ausência de sua pessoa. Ausência de Rita.

A chuva volta a cair sobre a cidade. Pela janela vejo as luzes a iluminarem o vazio construído por tantas almas misturadas a soma de suas próprias incerteza. Sou mais um, e minhas incertezas se somam as demais. Visto a capa de chuva. Saio para a rua. Frio, a chuva ainda não está forte. Acendo um cigarro. Tragar dói às costas. Ando devagar. Entro no primeiro bar.

- Uma vodca, por favor.

Bebo devagar. O bar está quase vazio. Poucos homens, barbudos, suados, falam palavrões, tem os olhos pequenos pela embriagues, aqui dentro tenho a impressão de que o tempo passa ainda mais devagar, isso aumenta ainda mais a ausência de Rita. Mais uma vodca, outra, três, quatro cinco. A cabeça gira. A chuva aumenta. Um dilúvio, uma tempestade. Saio para a intempérie. Meus passos agora estão vacilantes por causa da vodca.

Vejo na esquina uma moça, pernas longas, pernas de Rita, maquilagem carregada, batom vermelho sangue de boi, cabelo cortado à chanel. É Rita. Caminho até ela.

- Olá Rita.

- Oi meu bem, como está?

- Estou a sua procura.

- Que bom que me achou, querido.

- Vamos para casa amor?

- Claro.

Ela me dá a mão e subimos a rua. No apartamento tenho dificuldades para abrir a porta, Rita me ajuda. Sirvo uísque para ela, bebemos, fazemos um brinde a nosso reencontro. Estou muito feliz. Ela sorri, finalmente vejo seu rosto, e é muito bonito apesar de tanta maquilagem.

- Você é linda Rita. - Digo a ela.

- Obrigado, meu bem, você é muito gentil.

Beijo a boca de Rita. Sua boca tem gosto de uísque com cigarro, ou será a minha? Beijo os seios de Rita e o resto de seu corpo. Faço amor com Rita. Durante a noite não consigo tirar os olhos do rosto de Rita, quero descobrir cada detalhe, para nunca mais sofre com sua ausência. Durmo abraçado a Rita.

Acordo com o sol entrando pela janela e batendo em cheio nos meu rosto, as costas ainda doem, o nariz lateja, o corpo todo está dolorido. Onde estará Rita. O quarto está todo bagunçado. Parece que passou um tornado por aqui, penso, ainda confuso e com sono.

Com o passar dos minutos percebo a ausência de muitos dos meus pertences, relógio, carteira, cartões de credito. A mulher não era Rita, era uma ladra qualquer. Uma prostituta, que bêbado, achei ser Rita. Mas Rita não me roubaria. A cabeça dói. Fico andando pela casa, e noto muitas ausências, até mesmo uma tela que havia na sala ladra levou. Meio dia. Desço para a rua. Como um restaurante. Comida a quilo. Estou sem fome. A cabeça ainda gira.

Volto para casa caio na cama. Apago.

Tenho um novo sonho com Rita. O cenário é um daqueles filmes de bang-bang. A porta do sallon balança para lá e para cá, ao sabor do vento, que sopra vindo do leste, poeira, rua de terra batida. Mulheres me acenam do alto de uma estalagem. Caminho para dentro do Sallon. Muitas mesas, homens de botas, esporas, revolveres nas cinturas, chapéus de vaqueiro, ao piano um homem de colete preto toca uma bachiana qualquer. No meu peito uma estrela de xerife, caminho pisando duro sobre minhas botas de couro cru, passo as mãos no bigode, tusso alto para mostrar a todos minha presença austera e provavelmente temida, minha postura de xerife de velho oeste. Nos fundos do sallon, a direita do piano há um pequeno palco, onde dançam seis dançarinas com vestidos compridos. Uma delas me chama a atenção por estar com o rosto coberto por uma máscara. Dirijo-me ao cara por detrás do balcão, o único sem chapéu.

- Por quê aquela dançarina está usando máscara? Pergunto.

- Por quê ela é Rita, a mulher sem rosto.

Acordo. Suado e com a cabeça ainda latejando. Durmo de novo. O sonho continua.

Aos poucos o sallon está cheio de cawboys, alguns mal encarados. Começa uma briga em um dos cantos perto do palco, tiros, cadeiradas, garrafadas, uma balburdia infernal. No meio da confusão um sujeito com pinta de vilão de faroeste salta sobre o palco e agarra Rita. Joga ela sobre os ombros e salta a janela mais próxima. Saio correndo em meio ao tiroteio, balas zunem aos meus ouvidos, salto a janela atrás do sujeito.

Ele me espera já com armas em punho.

- Vamos duelar pela donzela sem rosto. - Diz o sujeito.

- Escolha suas armas. - Digo.

Damos as costas um ao outro contamos até dez e nos viramos já atirando. A bela do sujeito passa rente ao minha orelha. Ele cai. Acertei bem no peito dele.

Rita está encolhida atrás de um barril velho. Caminho até ela. Ela se levanta.

- Obrigado xerife. - Ela diz. - O senhor merece um beijo.

Ela vai tirar a máscara para me dar um beijo.

Trimmmmmmmmmm… o telefone toca. Engano mais uma vez.

Mais tarde. Muito mais tarde, não sei quanto tempo fico nesse acorda e dorme, dorme e acorda. Já é noite mais uma vez. A vida é isso. Dias e noites. Ninguém da repartição me ligou para saber noticias. Ninguém quer saber de ninguém, estou sozinho no mundo. Estamos todos sozinhos.

Reúno os sonetos. Digito todos. Com cuidado para que nenhum erro passe despercebido. O windows não concorda com algumas de minhas expressões, coloca seu tracinho verde sobre as frases. Computador idiota, não entende nada de poesia. Vou escrevendo os sonetos para Rita. Espero que ela goste. Espero que ela goste de poesia. Espero que goste de mim. Espero que me mostre seu rosto, para que finalmente eu possa fazer um soneto para seu rosto. Onde poderei encontrar Rita? Se sempre me engano, nunca sei quem é ela, confundo pernas, bustos, me confundo. Talvez Rita venha a meu encontro. Talvez Rita esteja na internet. Em alguma sala de bate papo, talvez tenha Orkut, tão em moda, todo mundo tem, talvez em seu profile tenha uma foto de rosto então eu a contemplarei por inteira ao menos uma vez. Entro na internet. Orkut, digito Rita. Aparecem centenas de rostos, mas sinto que nenhum deles é a Rita que procuro. Minha Rita. Rita a mulher sem rosto. Somente pernas. Bustos. Seios que sobem e descem enquanto ela respira. Não, Rita não está no orkut, não está no Beltrano, não está no Gazzag, nem em outro site de relacionamento. Não está na internet. Não está em canto algum. Está apenas dentro da minha cabeça. Sem rosto.

Coloco os sonetos dentro de uma pasta de couro. Saio para a rua. Nessa noite eu encontrarei Rita. Não passa dessa noite. Mas por onde começar. Onde a vi pela primeira vez? No baile de máscaras. Depois na biblioteca. Mas como sei que era ela na biblioteca se não vi seu rosto em nenhuma das duas ocasiões. Extinto. Aquela época ainda estava lúcido o suficiente para não confundi-la, agora que estou perturbado a confundindo com qualquer uma. Sim, vou a biblioteca.

Paro o carro enfrente ao prédio da biblioteca. Tudo fechado. Apenas um guarda quase que na esquina. Desço do carro e vou até ele. Pergunto sobre os funcionários da biblioteca. Se ele conhece algum deles. Diz que sim. Fala-me o endereço. Decoro e volto para o carro. A noite parece que vai ser longa. Volta a chover. Raios. Trovões. Chuva e mais chuva. Os postes com suas lâmpadas amarelas vão clareando meu caminho através das ruas da cidade, iluminado os episódios de minha caçada por uma mulher sem rosto. Tenho a certeza de que nessa noite ainda encontrarei Rita. Certeza de que ainda essa noite contemplarei seu rosto. E enfim poderei fazer o último soneto e então descansar em paz.

Vontade de fumar. Acabou o cigarro. Paro assim que vejo um bar aberto.

- Um maço de cigarros.

- Só tenho Rithz. Pode ser?

- Rita?

- Eu disse Rithz e não Rita.

- Ah sim , pode ser.

A chuva aumenta. Chove torrencialmente. A casa da bibliotecária fica em um outro bairro, afastado daqui. O trânsito quase não existe. Poucos carros. Faróis acesos. Vermelhos. Amarelos. Sinais fechados para carros que não existem. Vermelho. Espero abrir. Deserto. Chuva. Luzes opacas. Ossos úmidos. Pigarreio. Ligo o rádio. Tusso. Chiados de uma FM qualquer. Dirijo devagar. A chuva lava as ruas com violência. A truculência da chuva assusta os pedestres. Muito tarde. Tusso, abro o vidro. Acendo um Rithz. Nunca fumei desse cigarro. O cigarro é longo, uma dose maior de morte prematura. Tomo câncer de pulmão em goles longos.

Rita está em alguma parte dessa cidade enorme. Em uma casa qualquer em qualquer uma das milhares de centenas de ruas dessa selva de concreto. Preciso encontra-la, ainda esta noite. Talvez ela já esteja dormindo. Sonhando sonhos coloridos e brandos. Eu a encontrarei, nem que leve a madrugada toda.

Alguns bares lotados. Boates. Danceterias. Talvez Rita esteja em alguma delas. A bibliotecária deve saber. O motor ronca como se estivesse com sono por debaixo da lataria sovada pela chuva. As ruas vão ficando estreitas à medida que avanço nas artérias e à medida que me afasto de seu coração gelado de concreto e ferro. Água. Muita água. Os postes têm a luz cada vez mais pálida.

A rua é essa. A casa é aquela. Paro o carro no meio fio, a enxurrada promete arrastar o carro rua a baixo. Desço na chuva. A casa não tem portão, nem campainha, subo alguns lances de uma pequena escada, as luzes estão todas apagadas, as paredes tem a tinta gasta, há um cachorro encolhido num canto da pequena varanda, ele não se mexe, parece não se importar nenhum pouco com minha presença, bato na porta. Ninguém atende de imediato. Acendo um cigarro. Espero alguns segundos. Nenhum movimento dentro da casa. Bato mais uma vez. Nada. Outra vez. Nada. Uma terceira vez. As luzes se acendem. Ouço uma voz feminina. Mas não entendo o que diz. Ouço passos, que ficam mais pesados à medida que se aproximam da porta. Uma moça abre a porta. É a bibliotecária.

- Preciso falar com você. É urgente.

Ela não se assusta. Reconhece-me da biblioteca, estou sempre por lá, sou um leitor mediano, leio alguma coisa de vez enquanto, mas na biblioteca eu apenas folheio, fico horas a folhear. Ela deve me achar meio esquisito por isso. Todo mundo acha. Eu também acharia se não fosse comigo. Ela me convida para entrar. Diz que estou molhado. Estava na chuva e não podia ser diferente, imagino. Os olhos dela denotam um misto de curiosidade e receio. O que temerá? Será que acha que sou algum maluco? Bem , talvez. Conto a ela a história de Rita. A curiosidade aumenta e vence completamente o receio no fundo de seus olhos. Ela faz um chá. Quente. Fumegante. A chuva bate na janela. Ela presta atenção na história. Eu conto devagar, tenho medo de esquecer algum detalhe. Falo a ela sobre os sonetos. Ela gosta de sonetos. Fala-me de Rimbaud. Digo que não sei quem é. Ela cita um verso. Eu não falo francês. Acho que ela também não. Fico sem entender mesmo assim. Retorno para a história de Rita. Digo que preciso de ajuda para encontra-a, preciso de sua ajuda. Ela toma o chá fica me olhando. Volta a pensar que eu sou maluco. Lembra-se vagamente ta tal moça, mas não sabe se ela se chama Rita. Diz que o nome da tal moça e o endereço devem constar da lista de freqüentadores da biblioteca. Pede para que eu passe na segunda-feira. Digo que tem que ser essa noite ainda. Ela fica me olhando pasma. Digo que é um caso de vida ou de morte. Ela, depois de muito relutar, resolve me ajudar. Tem as chaves da biblioteca.

Ela se veste. Pega um de meus cigarros acende e dá uma tragada profunda.

- Vamos encontrar essa tal Rita.

A chuva está ainda mais forte. A madrugada vai se afunilando. Rumamos para a biblioteca. O mesmo deserto nas ruas. Os mesmos sinais fechados para os mesmos carros que não existem além do conforto de suas garagens quentinhas de subúrbio.

Falo ela, que descubro se chamar Ana, sobre os últimos acontecimentos, as alucinações com Rita, os delírios, devaneios, ela me olha meio atônita e curiosa, acho que imagina as situações à medida que eu as narro e chega às vezes até mesmo a esboçar um sorriso, que a medida que mergulhamos mais densamente no coração da metrópole, vai se tornado uma gargalhada, que extravasa mais do que eu posso imaginar a principio. Ana me conta do claustro da literatura. das tentativas frustradas de publicar, dos livros começados, das, das madrugadas acordadas, feito Balzac a compor sua obra obscura nos porões de uma Paris inóspita, fria e despreparada para a gloria de sua literatura. ela fala muitas coisas, mistura outras, uma enorme sopa de informação que se mistura com Rita e com meu desejo de ver-lhe o rosto. Caos e chuva. Diz que a Paris de Balzac era uma metrópole no coração do mundo, tal como essa cidade de ferro, concreto e fumaça, e que a literatura não achava brechas para se espalhar pela cidade e lhe curar o câncer da insensibilidade.

O guarda ainda está no mesmo lugar em sua guarita, escondido de Deus e de sua fúria.

- O senhor voltou? - Ele constata ao me ver descer do carro com a bibliotecária.

Ana abre a porta enorme enquanto o guarda fica olhando, com certeza imaginado coisas, enxergando possíveis conspirações no fato de um homem e uma mulher entrarem juntos em um prédio de madrugada. Ela consegue se mover nos escuro, enquanto eu apenas tateio as paredes a procura de apoio. Ana acende as luzes. Caminha em direção as fichas de cadastros. Procura e não acha nada que a anime. Continua a procurar.

- Aqui está Rita, D`brael. Tem o endereço. Solteira, 27 anos.

De volta para o carro. Ana resolve que quer ir comigo. Mergulhamos mais uma vez na chuva. A medida que vamos nos aproximando de nosso destino minhas mãos vão ficando suadas, minha garganta está seca, a voz quase não sai, pareço um viciado em meio a uma crise de abstinência. Dirijo o mais rápido que posso. Ana diz para irmos devagar, mas sua voz entra por um ouvido e sai pelo outro. Nada mais tem espaço em minha cabeça além do desejo incontrolável de ver Rita. Ver seu rosto, finalmente.

No endereço há uma casa enorme e antiga, terrena, tijolos a vista, canteiros ao redor, touceiras de flores, rosas, margaridas, cravos, e muitas outras espécies que desconheço o nome e o aroma, que no entanto entram por minhas narinas sedentas do perfume de Rita. Ainda chove, mas agora a violência das águas vai diminuindo gradativamente a medida que caminho até a porta da casa. Bato. Silêncio. Bato de novo. A porta se abre e deixa escapar o volume da TV ligada. Um senhor de óculos redondos e olhar cansado, pele mirrada e dona de um tom anêmico me olha com olhos que já foram belos mais agora nada mais são que dois borrões azuis por detrás da grossa lente dos óculos arcaicos que sustenta sobre o nariz.

- O que está acontecendo? - Ele parece assustado.

- Preciso falar com Rita. - Eu digo.

- O que disse, fale mais alto, estou sem meu aparelho de surdez.- O velho então aponta para a TV ligada. - Estava aqui vendo as imagens coloridas da TV, imagens muito bonitas. Imagens de um filme de guerra. Eu estive na guerra, perdi amigos, perdi primos, muitos morreram na guerra. Você não sabe, nem poderia saber, não tem idade pare ter estado na guerra. Eu já não enxergo nada. Fico aqui olhando as imagens, não preciso escutar o que dizem. Eu sei o que se passa, o que sentem, o que dizem, eu sou um deles, estive nessa maldita guerra. Ainda ouço os sons, os gritos, os tiros, os mísseis, as balas zunindo na madrugada, a fome, o frio, as dores, meu Deus que horror.

- Onde está a Rita? - Interrompo seu monólogo.

- Rita? A sim, ela está no trabalho.

- Trabalho, mas é madrugada.

- Ela trabalha de madrugada. Uma boate, um bar, não sei direito. Nautic`s Club, já ouviu falar?

- Não, mas descubro onde é.

- Não esteve na guerra, não é mesmo?

- Não.

- Devia dar graças a Deus por isso, meu filho. Aquilo foi um inferno.

Ele fica me olhando. De que guerra fala. Não imagino que tenha idade para de fato ter estado na guerra. Ele fecha a porta e imagino que volte para seu filme, volte para a guerra. Ana está fumando encostada no carro, quase não chove mais, uma garoa apenas, faz um pouco de frio.

- Ela está trabalhando. Nautic`s Club, já ouviu falar?

- Não. Não conheço esse lado da cidade.

Ela me estende o maço de Rithz, acendo um e fumo devagar, penso nos episódios da noite. Consulto o relógio, já é madrugada alta. Entramos no carro a procura do tal clube. Algumas quadras adiante uma loja de conveniência dessas 24 horas. Entro, compro duas cervejas longneck e pergunto pelo clube. O rapaz me informa. É uma espécie de boate literária. Bebe-se, fuma-se e se lê poesia.

Volto para o carro, entrego a cerveja a Ana. Ela toma em goles longos. Nunca imaginei uma bibliotecária bebendo dessa maneira. Ela se senta no banco do carona, ainda fumando, liga o rádio. A FM toca um jazz nostálgico.

- O que vai dizer a ela quando a encontrar?

- Não sei.

- Como não sabe? Tem que dizer alguma coisa. Ou vai simplesmente dizer a ela que escreveu um livro de sonetos, com um soneto para cada parte do seu corpo? Não acha que vai a assustar?

- Não sei. Preciso pensar. Preciso dizer alguma coisa a ela, não é mesmo?

- Sim, precisa dizer.

- Não sei se vou conseguir.

O saxofone vaza da FM. A melodia apática atravessa meus tímpanos. O que direi a Rita? Tenho a impressão de que não conseguirei dizer uma única palavra. Sensação de que ficarei mudo perante a contemplação de seu rosto. Seja qual for o rosto que ela tiver.

Na porta do Nautic`s Club há um letreiro de néon com as letras enormes em um desenho gótico, simples porém atraente. Um guarda na porta. Mãos atrás das costas, estático, estacionado entre uma postura de ataque e de defesa. Ana fica no carro. Pago a entrada entro. O lugar não é muito grande, fumaça por todos os cantos, a algumas mesas onde pessoas jogam, jogos de tabuleiro, batalha naval, banco imobiliário, xadrez, damas. Tomam cerveja preta, vodca, uísque, guaraná. Fuma cigarros aromáticos, incensos crepitam nos cantos e nos centros de algumas mesas. Estranho cenário para uma boate. O lugar está congestionado, as pessoas se esbarram, no entanto a ordem é impecável, os movimentos não se misturam e nem se coagulam, a limpeza do lugar é impecável, apesar dos odores múltiplos o ar é gostoso de ser respirado na mesma proporção com que temos imenso prazer ao respirar dentro de uma confeitaria.

Em um dos cantos da sala há um pequeno palco, onde um homem pequeno, de boina e bigode de pintor expressionista lê um poema em uma voz pausada. Não consigo encontrar Rita. Qual dessas moças que andam para lá e para cá será ela? Todos prestam atenção nos versos que o homenzinho lê. Até mesmo aqueles que parecem estar concentrados nos jogos prestam uma atenção a sua vozinha impertinente. O homem acaba de ler e é aplaudido. De repente tenho uma idéia para encontrar Rita. Subo no palco. Todos ficam me olhando. Acho que não tenho o aspecto dos freqüentadores da casa e ainda por cima estou meio molhado.

- Gostaria de ler alguns sonetos que fiz para uma pessoa que amo muito. E que acreditem nunca vi o rosto. Mas fui informado por um velhinho, quase surdo, que jura ainda ouvir os sons da guerra, que ela trabalha aqui.

As pessoas param o que estão fazendo e colocam seus olhos sobre mim. Leio o primeiro soneto. O segundo. Um soneto para cada pedaço do corpo de Rita. Soneto após soneto a mulher toda vai se desenhando. O silêncio é completo, todos estão atentos aos versos, tentando adivinhar qual o rosto de Rita. Tantos olhos sobre mim, não sei dizer quais são os olhos de Rita. Ate que uma moça, usando mini saia jeans, sai de entre um grupo mais a um canto, e então reconheço aquelas pernas. São as pernas de Rita. Nesse momento todos os olhos da assistência, e os meus também, já estão em Rita. Meus olhos sobem lentamente de suas pernas, tão conhecidas minhas, para sua cintura, seus seios, seu busto e finalmente seu rosto.

Desço do palco, caminho até ela e lhe entrego os sonetos. Ela não diz nada apenas estende as mãos para recebe-los. Também não digo nada. Sinto no peito uma alegria indescritível e uma necessidade enorme de compor um último soneto. Um soneto que descreva em cada verso o mais delgado dos traços de seu rosto. Caminho para fora da boate, os cheiros se misturam, a fumaça se torna uma cortina que me esconde os demais rostos e só consigo ver o de Rita, fossilizado para sempre em minhas retinas. Passo pelo guarda. Ana está mais uma vez apoiada no capô do carro, fumando.

- E então? - Ana quer saber.

- Preciso ir pra casa fazer um soneto.

Lágrimas escorrem dos meus olhos. Começa a chover e o céu então chora junto comigo.

Odair J. Alves

Junqueirópolis, janeiro de 2008.

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