segunda-feira, 26 de maio de 2008

Jogando Black Jack com Deus.


Para Vânia Mesquita, esse conto nasceu de uma conversa triste que tivemos.



Penso fazer uma ácida crítica à classe média, seus valores deturpados, sua aparente ância de engolir a si mesma em seu insaciável apetite egocêntrico. Sua precária memória frente à história de seu próprio país, seus ideais vazios, suas vitórias inglórias, seus clichês, seus chavões já domesticados, sua perenidade perante a fatalidade, quase que casual, do próprio sentimento se ser a si mesma. Tenho horror a esse segmento social, talvez nascido da burguesia, principal seqüela do feudalismo, e que por hora me acho incluso, recluso e seduzido por seu charme, devorado e cuspido por sua fúria.

Penso em escrever sobre isso, o meu próximo romance. Um romance trinta anos depois do primeiro, alias, de monumental aceitação da crítica, mas de vendagem quase inexpressiva. Os corredores do apartamento ainda estão abarrotados de exemplares encalhados. Esbarro neles dia e noite, estão ali, imóveis, a dez anos e agora penso em escrever um novo romance, um romance sobre as origens da classe média. Quem leria algo assim?

Olho pela janela e penso na classe média, enquanto acendo um cigarro, solto a fumaça em baforadas espaçadas, como se quisesse desenhar algo no ar, já poluído, da cidade. Fiquei trinta anos escrevendo para os jornais, tentando ser o menos cruel possível, menos sarcástico, lutando para sobreviver e viver a minha vida, sem me envolver com a notícia, sem virar a própria notícia, todos esse anos a procura de um tema para um grande romance, um romance que enojasse a crítica e seduzisse o público. E tudo no que consigo pensar é na classe média, uma pedra no sapato do bom senso, ou o próprio bom senso encarnada em sua descarnada figura apática, paradoxo de si mesma, penso entre baforadas de cigarro.

O mundo mudou desde o meu romance, já não há mais ditadura, a não ser a ditadura silenciosa da imagem, silenciosa porém tão cruel quanto a ditadura dos generais e dos tanques de guerra, a ditadura dos jornais, da imprensa, dos comercias de refrigerante, a ditadura da telenovela todos os dias no mesmo horário, com sua lógica absurdamente burguesa, seu axioma pueril, ao mesmo tempo, que obsceno. O mundo mudou desde o meu romance, mas tudo funciona ainda como era a trinta anos atrás. É terrível perceber isso. A trinta anos eu já fumava assim, soltando a fumaça dessa mesma maneira, é cruel perceber como o homem está plantado em uma sociedade que não evolui, simplesmente se maquia.

Volto a pensar na classe média. Eu a vejo como uma prostituta, da mesma forma que Henry Miller descreveu Paris em seu romance Trópico de Câncer. O cigarro acaba, a fumaça se vai, mas ao redor nada muda, a consumação do tempo torna-se a cada instante uma ilusão maior do que a própria existência que ela finge controlar. Estamos perdidos e sós e logo estaremos mortos, e isso é tudo.


Sento-me na frente da minha velha Olivetti, e me ponho martelar seu teclado já surrado, escrevi meu primeiro, e único, romance nesta mesma máquina a trinta anos atrás, em meio ao caos dos anos sessenta, das prisões, das torturas, da cavalaria pisando os estudantes nas praças, um olho nesta máquina e outro na porta, a qualquer momento um oficial do DOPS, ou um lunático qualquer poderia entrar apartamento adentro, escrevi rapidamente, mas nunca com mais pressa do que era preciso, naquela época escrever fazia parte da revolução, de uma revolução pessoal, despertava um sentimento de euforia que era, é até hoje, simplesmente inexplicável. O romance foi publicado vinte anos depois de escrito. E cá estou eu pensando em como a classe média daria um romance.

O telefone toca e seu som se mistura com o matraquear da Olivetti, um único som, uma sinfonia sem sentido, uma música sem músculos faciais; incapaz de sorrir. A trinta anos o telefone não tocava, eram bombas que explodiam, eram gritos, protestos, piquetes, prisões, pneus cantando, e o matraquear da máquina na penumbra desse apartamento. Os dedos tocam-na com uma certa dose de melancolia, quase que uma misantropia, no entanto sem a costumeira mágoa, que essa costuma trazer a tiracolo, e por outro lado, no entanto, é como se o tempo regressasse por um caminho já conhecido, mas não é nada disso, é apenas o telefone que toca e desfigura a peça estampada na partitura. O som dos telefones mudou nos últimos trinta anos, mas o incomodo que ele traz não, o mesmo de sempre.

Interrompo tudo, pego o telefone, é Eliza.

- Alô! Digo

- Ola, o que está fazendo?

- Amaldiçoando a classe média, enquanto tento reaprender a escrever.

- E isso é grave ou contagioso?

- Acho que não.

A trinta anos atrás os cabelos de Eliza se pareciam os de Jani Joplin no festival de Montreux. Ela foi a primeira pessoa a ler meu romance. Sua voz, como sempre, está calma, suave, quase que uma canção de ninar, diferente da de Jani Joplin. Vi Eliza muito pouco nesses anos e sobretudo depois que ela voltou da Itália, após a anistia. Ela voltou diferente, os olhos estavam sempre longe, perdidos, quase que ausentes, no entanto a voz tinha a mesma serenidade de sempre, mas já não tinha mais os cabelos de Joplin, que alias já havia falecido.

- Vai escrever novamente? Ela pergunta

- Estou pensando escrever um romance sobre a classe média.

- Vá em frente.

Conversamos por mais alguns minutos e quando ela desliga, eu estou com sono, sua voz é realmente a mesma canção de ninar de trinta anos atrás.

Procuro um outro cigarro, mas o maço está vazio. Saio para a rua e está começando a chover. No meu romance sempre estava chovendo, essa é imagem que tenho da cidade, se eu fosse pintor, e não escritor, e tivesse que representar São Paulo em uma única tela, eu pintaria a chuva. O personagem do romance gostava de andar pela madrugada, a chuva, o pessimismo, carregado de lirismo, da madrugada o seduzia mais que as prostitutas que se ofereciam em determinadas esquinas, ele olhava tudo, indiferente, seguia seu caminho, sempre enfrente, até o amanhecer, era uma espécie de Peter Pan, não queria envelhecer, não da velhice que via imergir das artérias da cidade.

Eu, no entanto, já me sinto mais velho do que a própria cidade, essas ruas, que descrevi no romance, e em eventuais contos nas ultimas décadas fazem parte de mim, são meu lar e meu refúgio. Entro no bar aberto, lâmpadas de gás néon iluminam letreiros já embaçados pelo cansaço de meus olhos envelhecidos, acendo um cigarro, fico olhando a chuva cair através da cortina de fumaça, olho ao redor e me pergunto onde está a classe média, o que faz em uma cidade que por hora está acalentada sobre o véu da chuva noturna? Tenho a impressão de ser eu mesmo o personagem do romance e dos contos que escrevi, vejo em mim, refletidos, seus tormentos, seu apreço e sua piedade em relação as pessoas e à própria cidade, que jamais se mostra frígida apesar de tanta chuva.

Olhar através da fumaça, por instantes, é como olhar para dentro de mim mesmo, para dentro dos meus velhos olhos fadigados, exaustos, exauridos, embaçados pelas velhas imagens opacas do dia-a-dia, e por instantes eu sinto frio. Um frio que não pode ser agasalhado, um frio que é mistura de saudade e estranheza frente a inevitável certeza de nada. Nesse instante sinto falta da voz de Eliza sussurrando palavras desconectas nos meus ouvidos enquanto fazíamos amor no apartamento, enquanto lá fora estudantes se chocavam contra a tropa de choque e enquanto heróis barbudos cantavam a Internacional Comunista nos porões do governo. As palavras que ela dizia nunca formavam frases coerentes, nunca eram uma idéia, nunca expressavam um pensamento por inteiro, no entanto ouvi-la, em sua adocicada voz de Iara era algo simplesmente sublime, de um prazer até mesmo mais intenso do que o próprio orgasmo que se dava a seguir. Eliza, em mim, é o próprio retrato da classe média. Eliza é o próprio retrato de São Paulo, seu riso burguês, seu comedimento, sua timidez de quem chega sem ser convidada e entra assim mesmo. É o esteriótipo mais suave da classe média, penso nisso durante muito tempo, a classe média pode, no romance que quero escrever, estar representado em uma única personagem, uma espécie de Eliza.

A velha Olivetti é uma espécie de souvenir de uma época distante, de uma época em que não havia computadores por todos os cantos, de uma época onde a ditadura ainda era imposta por homens e não por máquinas, mas de certa forma os homens por detrás dessas máquinas ainda pensam da mesma forma. Volto a pensar em Eliza, e em como as coisas, em relação a nós dois, mudaram nos trintas anos que se seguiram ao nosso colóquio, em como as coisas se despedaçaram de modo a se parecerem, neste momento, com uma tela qualquer de Picasso, inteligível e desfigurada, e nem posso culpar a ditadura por isso, a não ser a ditadura do tempo, que também sabe ser cruel.

Procuro por ela, bato na porta de seu apartamento, ela abre, seu sorriso, por instantes se mistura com o som do teclado da Olivetti, em um delírio quase já sem data, no entanto, eternamente anacrônico. Entro e ela me serve café. Fala pouco, quase sempre planos para o futuro.

- Quero viajar um pouco. Quem sabe voltar a Itália. – Diz

Seus olhos se entristecem por instantes. Ela foi torturada, espancada, violentada, ultrajada, humilhada pelo governo dos generais, ficou doente nos porões e depois foi expulsa do país. Era uma jornalista de carreira promissora, um dia invadiram a redação, quebraram as máquinas, os tipógrafos, os funcionários foram arrancados de seus deveres, jogados em porta malas e depois em porões escuros e fétidos, e as seqüelas ainda podem ser vistas no fundo dos olhos ardósia de Eliza. Tenho vontade de fazer tantas perguntas, perguntas que guardei comigo, por tanto anos, respostas que espero a três décadas. Não digo nada. Simplesmente a beijo na boca, sua boca tem o mesmo gosto de trinta anos atrás, eu jamais me esqueci. Durante o beijo é como se um filme passasse por minha cabeça, um filme surrealista, retrô, démodé em todos os aspectos e cenários, um melodrama, suave e triste, piegas talvez, mas não consigo enxergar os detalhes, as nuances estão conspurcadas pelo tom sépia que escapa de uma velha fotografia de trinta anos atrás. Fazer amor com ela depois de trinta anos é como anular tudo o que houve nas ultimas três décadas, parece que Eliza também sente a mesma coisa.

- Pensei sobre o que me disse pelo telefone.- Ela diz.

- E o que foi?

- Sobre reaprender a escrever.

- E a que conclusão chegou?

- Acho que esse talvez seja o caminho certo.

- Talvez, recomeçar trinta anos depois seja como nascer de novo.

- É bem provável que sim.

Ficamos olhando pela janela, a noite mais uma vez cai lá fora e trás consigo pequenos pedaços dispersos de antigas tempestades em sua garoa persistente, a vida lá fora se renova aquém de nossa presença, aquém de nossos atos e sentimentos, aquém de nossas esperanças,digo isso a Eliza.

- Estamos jogando black Jack com Deus.- Ela diz

Penso nisso por alguns segundos.

- E pelo visto estamos perdendo. – Digo simplesmente.

Acendo um cigarro e fico olhando a chuva cair. Abraço Eliza e me esqueço do romance, me esqueço das marcas da ditadura do corpo e na alma dela. Me esqueço da classe média.


Junqueirópolis, 29 de abril de 2008

Um comentário:

DaN*** disse...

lINDO LINDO...PERFEITO...

so me coloco em questão a parte de Janis Joplin e seus cabelos no festival de Montreux.. =( não me recordo...
Estamos perdendo Feio para Deus...

beijos querido sol