domingo, 28 de março de 2010

Usuário 482


Há duas longas semanas não saia de casa. Os dias se esticavam, alongavam-se para além do balé sinistro dos ponteiros do relógio na parede, enorme, faraônico, hostil. Patrício há duas semanas olhava para a janela, morava no terceiro andar, a janela dava para a esquina, ele via nitidamente o orelhão.
Há exatamente duas semanas o orelhão era seu objeto de estudo, um estudo meticuloso, com um binóculo observava o movimento ao redor do cubículo, em um caderno fazia anotações. As descrições eram claras, qualquer um poderia desvendar sua caligrafia de ex-professor primário.
158 pessoas haviam passado pelo orelhão nessas duas semanas, Patrício tinha tudo anotado, a mediada que via através das lentes do binóculo, ia transformando as imagens em dados precisos, estatísticas, os usuários estavam todos catalogados. Ele era bastante preciso em suas descrições, metódico, observava com calma, cautela, dando extrema importância aos menores detalhes.
Estava tudo ali no caderno, 158 pessoas meticulosamente descritas, altura aproximada, cor da pele, cor do cabelo, a roupa, os sapatos, detalhes como brincos, bonés, chapéus, gravatas, pulseiras e afins, tudo estava anotado.
Patrício com o binóculo em punho observava a 159ª pessoa a se dirigir ao aparelho. Uma mulher loira, bastante loira, vestido branco, nem curto, nem longo, um pouco abaixo da linha imaginaria que divide as coxas. Ele vai anotando. Observa com especial interesse a curva dos seios, o formato do rosto, a envergadura do braço estendido enquanto digita a série de números.
Nota que a mulher está bastante inquieta, olhando para todas as direções, como quem tem medo de ser surpreendida, enquanto espera a ligação ser completada. Passa as mãos sucessivas vezes pela cabeleira amarela, cabeleira essa que Patrício observa que não são naturais e sim frutos da moderna indústria cosmética, possivelmente aquele tom se deriva de algumas dessas novas colorações artificiais tão em voga entre as mulheres modernas.
Ela fala com os lábios colados ao aparelho, balbucia, enquanto olha em todas as direções. Patrício anota a hora do telefonema, 21:30. Depois de breves instantes daquela conversação incomum a loira devolve o aparelho ao gancho e fica parada na esquina. Parece aguardar por alguém. Isso ele não anota no caderno, afinal isso não interessa as estatísticas.
Ele sente sede, há varias garrafas cerveja na pequena geladeira em um dos cantos do cômodo, há duas semanas atrás eram muitas, à medida que os dias iam se passando enquanto observava o orelhão foi consumindo-as uma após a outra até restarem menos de uma dúzia. Abre uma delas e bebe no gargalo, acende um cigarro e volta para seu ponto de observação. A loira não está mais ali. Silêncio no orelhão.


Há três longuíssimas semanas, Patrício observa o orelhão. Notou que nos finais de semana o movimento de usuários do aparelho quase que triplica, notou também que nesses dias não existe um padrão exato de usuários, são todos os tipos de pessoas, desde crianças a senhores idosos e surdos que ficam gritando no aparelho. 3 semanas e já não resta mais nenhuma cerveja na geladeira, a comida também está ficando escassa, tem se alimentado basicamente de pão e queijo e tomado água.
A noite vai caindo, o movimento da rua vai diminuindo, por conseqüência também os usuários do aparelho telefônico da esquina, Patrício anota essa observação, isso importa as estatísticas, horários de maior e menor fluência de pessoas implica diretamente no funcionamento de seu objeto de estudo, o orelhão. Há dois dias atrás notou algo incomum, as pessoas colocavam o cartão no aparelho e depois desistiam de usa-lo e se iam embora, sem fazer ligação alguma. O aparelho estava com defeito, anotou isso também, importante fato. Na tarde do mesmo dia parou na esquina um carro com a logomarca, na porta, da empresa responsável pela manutenção do serviço de telefonia da cidade. Dois funcionários uniformizados passaram cerca de vinte minutos na recuperação do aparelho. Pronto ele estava de volta a ativa.
Patrício sente sede mais uma vez, mas as cervejas acabaram. Sem tirar os olhos do binóculos ele pega o telefone e pede uma pizza e um refrigerante dos grandes. Enquanto isso vê a mesma loira de uma semana atrás se aproximar o orelhão, está vestida o mesmo vestido branco, mais uma vez aguarda impaciente que a ligação seja completada, depois apenas cochicha no bocal do aparelho, enquanto mais uma vez observa a rua em todas as direções. Coloca então o telefone no gancho e volta para a esquina novamente em pose de quem aguarda por alguém.
Ding-dong
A campainha toca. Deve ser o entregador de pizza. Patrício o paga e ainda lhe da meia dúzia de moedas como gorjeta, então o entregador se vai resmungando. A loira não está mais na esquina, mais uma fez ele anota tudo no caderninho, hora, a roupa repetida da mulher, etc. Com a volta da loira, 220 usuários já passaram pelo telefone nesse tempo em que Patrício o tem observado. Ela sempre cautelosa, sempre falando aos murmúrios sempre aguardando na esquina e sempre desconfiada, essas informações ele não anota não fazem parte da sua pesquisa.
Mas que pesquisa é essa? Pra que todos aqueles gráficos, estatísticas? Nem mesmo Patrício sabe o porque dessa observação insana do orelhão da esquina, o caderno está quase todo cheio de dados, gráficos, estatísticas, diagramas, mas nem mesmo ele compreende esse repentino voyeurismo, que lhe surgiu tão de repente a quatro semanas atrás. Não consegue fazer quase nada além de se postar na janela com o binóculo em punho e observar o movimento de usuários do orelhão. Não tem mais lidos jornais, nem assistidos seus programas humorísticos que tanto gostava na TV, sua vida se resumia a apenas observar incansável e a anotar no caderno, e nisso já se passou mais de um mês.


Quase dois meses e 481 já passaram pelo orelhão, dois cadernos já estão cheios dessas anotações. O telefone toca, pensa em não atender, mas o tira do gancho e o põem no ouvido, deixando o binóculo sobre o banco. É a mãe do outro lado da extensão.
- Filho, faz mais de dois meses que não o vejo.
- Oi mãe.
- O que está acontecendo, meu filho?
- Nada mãe apenas ando ocupado.
- Ocupado com o que meninão, nem mesmo sai mais de casa.
- Ocupado mãe, agora preciso desligar.
Coloca o telefone de volta ao lugar, pega o binóculo e volta a observa o orelhão. O que vê o choca. A loira do vestido branco está caída ao alado do orelhão. O vestido tem uma enorme mancha de sangue na altura dos seios. Ele olha e não acredita. Deixa o binóculo e corre para a rua, desce os três andares de escada e chega a esquina exausto, vê a loira, o sangue escorre do peito, um ferimento a bala.
Como ele pode perder o maior de todos os acontecimentos naquele orelhão? O assassinato da loira deve ter ocorrido enquanto conversava com mãe no telefone. A loira ainda respirava. Patrício corre para o orelhão e liga o numero da emergência.
Volta para o apartamento e com o binóculos nos olhos observa a ambulância chegar e levar a loira embora com a sirene ligada. Por alguns instantes ainda fica ouvindo o som da sirene cada vez mais longe até desaparecer por completo. Depois somente o silêncio ao redor do orelhão, o deserto da esquina se agiganta. Patrício pega a caneta e anota o usuário numero 482, ele mesmo, quando chamou a emergência.
Finalmente sente sono, deixa o binóculo cair das mãos e caminha para o quarto, o orelhão já não mais o interessa. Deita e apaga a luz.
Lá fora, na esquina, o orelhão começa a tocar.

Dracena, 24/12/09



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